O Gerente da Noite
Já aqui falei por alto de cinema e da relação estreita entre livros e filmes, mas hoje vou falar de televisão. Mais concretamente, de séries televisivas.
Longe vai o tempo em que as séries que víamos na televisão eram os parentes pobres do cinema. Cá em Portugal quase se resumiam a séries policiais americanas e a uma ou outra produção inglesa ou eventualmente com outro país de origem (não estou obviamente a incluir as sitcoms, que sempre abundaram). Tinham em comum o facto de serem habitualmente interpretadas por actores e actrizes pouco ou nada conhecidos no mundo cinematográfico – eram assim como que um laboratório para novos actores, e para quem é mais jovem ou tem memória curta deixem-me dar-vos alguns exemplos de que me lembro assim de repente: Anthony Hopkins foi o Pedro de “Guerra e Paz”, na adaptação que a BBC fez em 1972 da obra de Lev Tolstoi; Meryl Streep e James Woods fizeram par romântico na mini-série “Holocausto” exibida em 1978 pela NBC; Jeremy Irons foi um dos protagonistas de “Reviver o passado em Brideshead”, uma série de 1981 produzida pela Granada Television com base no romance de Evelyn Waugh. Estas e outras séries foram a rampa de lançamento para grandes actores do cinema actual.
No entanto, apesar da sua inegável qualidade – sobretudo das séries britânicas, que foram e continuam a ser do melhor que por aí anda – as séries televisivas só há relativamente poucos anos adquiriram um estatuto autónomo de produto com interesse e qualidade no qual vale a pena apostar, com retorno garantido. Os bons resultados estão à vista, com produções milionárias e ao nível do melhor cinema, dirigidas por excelentes realizadores e protagonizadas por actores famosos – ao imporem-se como produto independente e valorizado, as séries televisivas conseguiram esbater a fronteira rígida que subsistiu durante muito tempo entre actores de televisão e actores de cinema (que curiosamente nunca existiu entre cinema e teatro, talvez por ambas as artes estarem associadas a uma ideia de qualidade e elitismo que a televisão nunca teve). E quem ficou a ganhar fomos nós, o público.
As séries britânicas sempre foram das minhas favoritas. Não há quem lhes chegue aos calcanhares sobretudo no que toca a recriar épocas passadas e romances históricos, e os actores e actrizes oriundos das ilhas britânicas (e para quem tiver dúvidas, as ilhas britânicas incluem a Irlanda) são dos melhores do mundo. Tão bons que conseguem imitar perfeitamente o sotaque norte-americano e por vezes nem nos damos conta de que não foram realmente nados e criados nos Estados Unidos. Dúvidas? Então aqui vão alguns nomes ao acaso: Audrey Hepburn, Michael Caine, Kate Winslet, Idris Elba, Ralph Fiennes, Keira Knightley, Ewan McGregor, Catherine Zeta-Jones, Hugo Weaving, Sam Neill, Vanessa Redgrave, Gerard Butler, Kiefer Sutherland, Orlando Bloom, Rachel Weisz, Christian Bale, Jude Law, Carey Mulligan, John Hurt, Jason Statham, Rosamund Pike, Tim Roth, Julie Christie, Christopher Lee, Damian Lewis, Joan Collins, Gary Oldman, Ian McKellen, Kate Beckinsale, Colin Farrell. E estes são só alguns dos que mais associamos ao cinema americano, porque a lista é quase infindável.
Bom, mas vem isto tudo a propósito de quê?
É que fiquei apaixonada por uma mini-série de que já tinha ouvido falar bastante mas só agora tive oportunidade de ver (no canal AMC): “O Gerente da Noite”, a partir do livro homónimo de John Le Carré. São apenas seis episódios, mas muito intensos, bem realizados, bem produzidos, e sobretudo muito bem interpretados.
John Le Carré, cujo verdadeiro nome é David John Moore Cornwell, trabalhou durante alguns anos no MI6 (o serviço britânico de “informações”) e os seus primeiros livros giram à volta da espionagem no tempo da Guerra Fria, tendo a temática mudado depois para os conflitos religiosos e/ou éticos mas sempre com a espionagem como pano de fundo. Vários deles foram adaptados ao cinema, com mais ou menos sucesso, como “A Casa da Rússia”, “O Alfaiate do Panamá” ou “O Fiel Jardineiro”, entre outros. Os seus livros têm em comum enredos intrincados, personagens profundamente humanas e conflitos morais, mas a linha entre o bem e o mal está sempre nitidamente definida.
A história de “O Gerente da Noite” centra-se em Jonathan Price, um gerente de hotel que se vê inadvertidamente recrutado para se infiltrar na entourage de um poderoso negociante de armas que os serviços secretos britânico e americano querem apanhar. Roper é um homem ganancioso e sem escrúpulos que esconde habilmente as suas actividades ilícitas atrás de uma capa de filantropia e de uma vida privada inexpugnável. Empurrado pelos serviços britânicos de espionagem e por uma vontade pessoal de vingança – o assassinato de uma mulher com quem tinha tido um breve relacionamento – Price vai construir para si um passado violento e sujeitar-se a tudo para penetrar no mundo privado de Roper e tentar obter provas da sua má conduta.
O argumento da série tem diferenças substanciais em relação ao livro, mas o resultado final é muitíssimo bom. Uma das maiores alterações é o facto de o agente que convence Price a aproximar-se de Roper ser na série uma mulher (Angela Burr), e não um homem como no livro (Leonard Burr). Mais ainda, Angela Burr está grávida (devido à própria e muito visível gravidez da actriz Olivia Colman), o que dá à personagem e consequentemente à história uma dimensão mais humana e real. Além disso, a acção foi transportada para a actualidade, com o cartel colombiano de droga do livro a ser substituído por negociantes de origem árabe e um lógico deslocamento geográfico dos eventos. E o final da série é também bastante diferente – mas quanto a isso não vou falar para não ser spoiler.
Com tudo isto, já devem ter percebido que a série é de produção maioritariamente britânica (da BBC, em parceria com as americanas AMC e Ink Factory), razão pela qual os actores também são quase todos britânicos, com grande destaque para os protagonistas: Tom Hiddleston (Jonathan Price) e Hugh Laurie (Richard Roper). Para os mais distraídos, Hiddleston é o “Loki” de “Thor” e “Os Vingadores”, e Laurie é nada mais nada menos do que o famoso “Dr. House”. Qual deles o melhor… Hiddleston já provou várias vezes que é bem mais do que uma carinha laroca, e arrisca-se seriamente a ser o próximo Bond – aliás, este seu Jonathan Price tem o factor coolness exacto para um hipotético 007, faltando-lhe apenas uma atitude algo mais blasé e quiçá mais “activa” para ser um alter ego do famoso espião (que tem vindo progressivamente a tornar-se mais “humano” de actor para actor). Quanto a Hugh Laurie, descoberto há uns anos pela América, tem carreira já bem mais longa e firme no Reino Unido. Além de House, por cá vimo-lo sobretudo em comédias, nomeadamente em várias das hilariantes séries “Blackadder”, em “A Bit of Fry and Laurie” (com o também excelente Stephen Fry) e nos filmes “Stuart Little”, mas ele é um artista multifacetado que além do mais canta, toca e tem dado a voz a inúmeras personagens de filmes de animação.
“O Gerente da Noite” entusiasmou-me também pelos bem escolhidos cenários da série: Maiorca, Istambul, Cairo, Devon e Zermatt. Embora na realidade as cenas passadas no Cairo e Istambul tenham sido rodadas em Marrocos e as de Zermatt quase todas em estúdio, há belíssimas imagens das cidades e paisagens que são mostradas em separador. Já a mansão de Roper em Pollença (norte de Maiorca) existe realmente; tem o nome de Sa Fortaleza, data do séc. XVII e pertence ao banqueiro inglês Lord James Lupton, sendo a propriedade mais cara de Espanha (foi comprada em 2011 por 40 milhões de euros). As imagens aéreas da zona filmadas para a série são de tirar o fôlego e fazem jus à beleza do lugar.
Só o trailer já é qualquer coisa de especial:
E já que falo de séries inglesas, deixo aqui a sugestão de algumas das minhas preferidas, para quem ainda não as tiver visto: Sherlock, Luther, Downton Abbey, The Office, The Bletchley Circle, Coupling, Prime Suspect, Two Pints of Lager and a Packet of Crisps, Pride and Prejudice, The Paradise. Há comédia, drama, crime e mistério, história, grandes romances – um pouco de tudo, para todos os gostos. E ao alcance de uns cliques.