Com a leitura de “Aurora Boreal” fiz as pazes com os policiais nórdicos. Eu explico. Depois da surpresa entusiasmante que foi a trilogia Millennium do Stieg Larsson (está na minha lista de favoritos e já falei das suas adaptações ao cinema neste post), tenho andado a espaços a ler obras de autores que se enquadram no estilo a que se convencionou chamar nordic noir (policiais nórdicos, na nossa língua). Mas ou tenho tido azar, ou então estou a ficar demasiado esquisita, porque até agora os ditos cujos que escolhi para a “experiência” têm sido algo desapontadores. Não fiquei particularmente fã de Camilla Läckberg, nem de Jo Nesbø, e Mons Kallentoft também não conquistou a minha simpatia. Mas não me interpretem mal, não é que os considere maus escritores, ou que os livros que li sejam completamente sofríveis. Nada disso. Simplesmente não me senti “agarrada” durante a sua leitura, não me entusiasmaram a ponto de querer ler mais e mais.
Por sorte, este livro de Åsa Larsson veio inverter um bocadinho o sentido da opinião que eu estava a formar sobre os agora tão difundidos (e tão na moda!) policiais nórdicos. Não sendo um livro a que eu possa chamar excepcional, gostei bastante de o ler e conseguiu prender a minha atenção e o meu interesse até ao fim.
A história é simples: um assassínio com pormenores macabros é cometido numa comunidade algo fechada na região mais a norte da Suécia; a vítima é um famoso líder religioso, e o crime atinge contornos mediáticos. Entre o potencial aproveitamento da situação por alguns e os conflitos emocionais latentes de outros, o enredo vai-se desenrolando e revelando a pouco e pouco segredos escondidos, comportamentos divergentes e sentimentos de culpa não resolvidos. A noite quase constante, o frio e a neve são também protagonistas da história, onde a “heroína” é uma jovem advogada que regressa à sua cidade-natal para tentar apoiar a irmã do pregador assassinado, ambos seus amigos na juventude. Os esforços que desenvolve para resolver o crime são contrariados pelos membros da comunidade religiosa, da qual ela própria tinha sido expulsa alguns anos antes, e a coadjuvá-la tem apenas uma polícia fora do vulgar.
A escritora consegue neste livro um bom equilíbrio entre a forma como descreve o ambiente psicologicamente “pesado” em que a história decorre e os momentos de acção mais intensa. Apesar da chave para a resolução do homicídio começar a ser desvelada algum (bastante) tempo antes do final e de se perder um pouco do factor imprevisibilidade, existe mesmo assim um certo toque de surpresa no modo como se resolve o mistério e como depois o livro termina.
Gostei da escrita de Åsa Larsson, que não é nem demasiado simples a ponto de se tornar desinteressante, nem demasiado floreada a ponto de se tornar enjoativa. “Aurora Boreal” é o primeiro livro da série Rebecka Martinsson, que conta com cinco no total, todos já editados em português.
Uma das particularidades dos livros policiais nórdicos é a brutalidade e até mesmo impiedade dos crimes que dão o mote a cada história, o contraste entre o carácter quase passional dos homicídios e a frieza habitualmente associada aos habitantes dos países do norte da Europa. Esta aparente incongruência é sem dúvida uma das razões para o recente mas já enorme sucesso desta corrente literária que está a conquistar cada vez mais adeptos, e que mais não faz do que mostrar que as forças e as fraquezas que nos tornam humanos são transversais a todas as pessoas: por baixo de um temperamento aparentemente gélido pode existir por vezes um vulcão prestes a explodir.
Tradução (cedida pela Editora Difel): Eduardo Saló
Rosamunde Pilcher é uma escritora inglesa nascida na Cornualha e internacionalmente reconhecida e premiada, e “Os Apanhadores de Conchas” é sem dúvida o seu livro mais famoso. Autora de vários contos e vinte e oito romances, começou a escrever em 1949 sob o pseudónimo de Jane Fraser e só em 1955 passou a usar o seu próprio nome na vida literária.
A história deste romance está construída à volta de Penelope Stern Keeling, uma mulher que tem uma forma incomum de encarar a vida e o mundo que a rodeia. É também a história da sua família, ascendentes e descendentes, e de algumas outras pessoas que se cruzam no seu percurso de vida. Penelope já tem mais de 60 anos e descobriu recentemente que sofre de uma doença cardíaca. O seu pai foi um pintor famoso que viveu grande parte da vida na Cornualha, onde Penelope também passou muitos Verões e alguns anos durante a 2ª Guerra Mundial. “Os Apanhadores de Conchas” é precisamente um dos seus quadros, e a sua única obra acabada que continua na posse da filha. Um recente aumento na procura e valor dos seus trabalhos leva dois dos filhos de Penelope a pressionarem a mãe a vender o quadro para satisfazerem os seus próprios interesses financeiros. Mas Penelope é uma mulher que se rege pelas suas próprias normas e aquele quadro representa para ela uma ligação ao passado que ela não quer perder. A doença recentemente diagnosticada e algumas outras ocorrências fortuitas, a par com o conflito aberto com aqueles seus filhos, levam-na a tomar consciência da sua mortalidade iminente e impelem-na a concretizar decisões há muito adiadas, numa atitude que é vista por uns como rebeldia demente, e por outros como independência de direito.
Narrado de forma modular, a acção do livro afasta-se por vezes da sua personagem principal para se centrar nos movimentos e pensamentos de outras pessoas que fazem parte da vida da protagonista, mostrando-nos a sua perspectiva dos acontecimentos. E transporta-nos, também a espaços, para o passado, revelando-nos lentamente o que está por detrás das atitudes de Penelope, à medida que nos conta a sua história.
Este foi o primeiro livro de Rosamunde Pilcher que li, e só posso dizer que gostei imenso. Sim, é verdade que há na história uma clara estereotipação das personagens, e uma ainda mais clara divisão ente “bons” e “menos bons”, sendo que os “menos bons” são as pessoas mais “formatadas” e conservadoras, que dão mais importância às aparências e aos bens materiais, e os “bons” aquelas que saem dos padrões e dão evidente primazia aos sentimentos. Mas isso não diminui a qualidade da obra, nem o prazer que me deu ler este livro. Existe muita sensibilidade na escrita de Rosamunde Pilcher, e muita riqueza narrativa também. A forma como nos transmite aquilo que cada personagem está a sentir é na maioria das vezes subtil, adivinha-se nas entrelinhas, na descrição dos movimentos, dos cenários. Há pensamentos e decisões que não nos são revelados directamente, mas apenas sugeridos ou até mesmo intencionalmente escondidos, e apenas deles tomamos conhecimento concreto mais tarde. A autora cria assim como que uma certa atmosfera de “suspense”, lança algumas pistas, deixa cair um comentário que indicia algo importante, mas sem o concretizar – e por vezes só vários capítulos à frente é que conseguimos vir a saber o que é. A história gira à volta de segredos, e a escrita consegue criar em nós essa sensação sem nos apercebermos. Ler este livro obriga-nos a um exercício intuitivo, e sem dúvida que fiquei com vontade de ler mais obras dela.
O exemplar que li é de origem editorial espanhola, apesar de estar em português, e em formato quase de bolso – foi distribuído a preço reduzido em conjunto com uma revista semanal. Apesar de a qualidade não ser das melhores, e das muitas e sempre irritantes gralhas e algumas falhas na tradução, óbvias e inadmissíveis (porque para isso servem os revisores), de uma maneira geral a qualidade até está melhor do que aquilo que seria de esperar de uma edição deste tipo.
Como nota final, e para quem for amante de viajar como eu, fica um aviso: ler este livro vai despertar a vontade de conhecer a Cornualha e as suas paisagens agrestes. Porthkerris (a localidade na Cornualha onde tem lugar uma parte da história) existe realmente, e pelas imagens que vi nas minhas pesquisas parece ser tão encantadora quanto as descrições de Rosamunde Pilcher dão a entender. E aqui está uma ideia que me parece interessante pôr em prática no futuro: levar na bagagem, sempre que possível, um livro que fale do local que vou visitar.
O que estou a ler: Corações Sagrados, de Sarah Dunant.