Bibliotecas de Verão
Decididamente, as Bibliotecas de Verão deixam-me dividida. Por Bibliotecas de Verão refiro-me àquelas séries de livrinhos normalmente pequenos e/ou fininhos, com capas mais ou menos chamativas, que alguns jornais e revistas lançam periodicamente por esta altura do ano e distribuem a custo zero – ou quase – com as suas publicações regulares, e cuja finalidade é obviamente a de tentar manter a fidelidade dos leitores durante o período de férias.
Vem isto a propósito de recentemente me ter encontrado à míngua de livros novos (houve atraso na expedição de uma encomenda que fiz) e ter decidido socorrer-me de um desses livrinhos que ainda se encontrava por ler.
Abro aqui um hipotético parêntesis para esclarecer que tenho uma prateleira reservada para livros que vou comprando ou me oferecem e ainda não li, junto com aqueles que comecei a ler há mais ou menos tempo mas nunca tive vontade de acabar (normalmente por desinteresse). É uma prateleira com muita rotatividade, por vezes bastante cheia e outras nem por isso, mas na qual também vivem alguns títulos há já vários anos, quase como se ali já tivessem lugar cativo. E é também uma prateleira muito democrática, porque entre estes “habitués” se encontram grandes clássicos coabitando com livros mais humildes, autores modernos e outros já falecidos, boas encadernações e publicações baratuchas, que até nestas coisas de leitura eu sou a favor da miscigenação.
Pois calhou então eu ter-me visto obrigada a ir buscar um desses “enjeitados” que ocupam a dita prateleira, e escolhi precisamente um clássico publicado há já alguns anos numa das tais Bibliotecas de Verão que referi acima: O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson.
Sendo uma obra pequena, praticamente um conto, a leitura não me ocupou muitos dias – e mesmo assim precisei de fazer render um pouco o peixe. Mas o que mexeu mais comigo foi mesmo a fraca qualidade da publicação em si. Por publicação neste caso já nem estou a referir-me à encadernação ou ao papel, mas sim à tradução e edição do texto em causa, que deixam muito, imenso, a desejar.
E eis aqui o motivo de me encontrar dividida: é que se por um lado eu sou uma acérrima defensora da leitura só pela leitura – porque acho que é melhor ler qualquer coisa do que não ler nada, pois assim pelo menos criam-se hábitos de leitura e com o tempo a tendência será sempre para ir “refinando” um pouco o gosto –, por outro lado tira-me completamente do sério assistir ao assassinato sistemático da língua portuguesa e irrito-me quando estou a ler textos mal escritos, seja por deficiência de quem escreve, de quem traduz, ou de quem edita.
Não é propriamente uma novidade dizer que a nossa língua tem vindo a ser progressivamente cada vez mais maltratada, e esta situação parece não ter retorno nem sequer melhoras. É assunto com pano para mangas e se começo a falar disso nunca mais acabo. Paradoxalmente, os grandes culpados desta situação parecem ser os agentes que à partida deveriam ser os guardiões maiores da nossa língua: os decisores do Ministério da Educação que concebem os programas de português que são ministrados nas nossas escolas, os professores que se preocupam mais com os conteúdos formais desses programas do que com os resultados práticos que eles irão ter, a comunicação social nas suas várias vertentes, e obviamente as editoras de livros.
Uma coisa é um livro ter um conteúdo fraquinho, ou estar escrito de uma forma vulgar ou pobre de vocabulário, ou ter um estilo ininteligível. São questões que têm a ver com o autor e com a decisão da editora de o publicar. Outra coisa completamente diferente é lermos um livro em que os defeitos maiores são a má qualidade da sua tradução, inúmeras gralhas e erros gramaticais, deficiências de formatação e outros quejandos. Desconcentra quem se apercebe desses defeitos, roubando uma parte do gozo que se tira da leitura, e engana quem não se apercebe deles e irá provavelmente repeti-los mais tarde noutras circunstâncias. É um mau serviço, e não tem desculpa.
Daí a minha dúvida quanto aos benefícios das tais Bibliotecas de Verão. São de louvar estas iniciativas que instigam à leitura, quaisquer que sejam os motivos escondidos por trás delas. Mas os benefícios que proporcionam ficarão à partida anulados se a qualidade formal da leitura oferecida for tão baixa que acabe por fazer mais mal do que bem.
O MÉDICO E O MONSTRO
Robert Louis Stevenson
Título: O Médico e o Monstro
Título original: Dr. Jekyll and Mr. Hyde
Autor: Robert Louis Stevenson
Ano de lançamento: 1886
Editora: Quidnovi, para a colecção Biblioteca de Verão da Global Notícias
Publicação: 2010
Número de páginas: 96
Apesar de já ter lido muitos clássicos, sobretudo durante a minha adolescência, e de conhecer sobejamente esta história, nunca tinha lido o livro. Não sendo R.L. Stevenson um dos meus autores favoritos, o tema abordado nesta novela é sem dúvida uma das grandes questões existenciais que aflige o ser humano: a coexistência do bem e do mal em cada um de nós. Stevenson trata-a à boa maneira da época vitoriana, quando a rigidez moral e os ditames sociais se sobrepunham à individualidade e até mesmo à felicidade pessoal, com tudo o que isso implicava de positivo e negativo. Um tema talvez menos candente nos dias de hoje, em que já não estabelecemos a maioria das definições em termos de preto ou branco e admitimos uma grande gama de cinzentos, mas sobre o qual vale mesmo assim a pena pensar.
O estilo de Robert Louis Stevenson é perceptível mesmo apesar da fraca qualidade da edição – mas confesso que por curiosidade fui coscuvilhar a versão inglesa, para confirmar se a minha impressão estava correcta e não tinha sido demasiado afectada pela tradução do texto. Embora tenha um narrador de fundo, a história é em certas partes indirectamente contada por outras vozes, e é constantemente engordada por descrições tanto dos locais como das pessoas, e no caso destas tanto físicas como psicológicas. O ambiente geral da novela é soturno, obviamente para acentuar o drama moral à volta do qual se desenvolve a história, e o desenlace não destoa.
Claro que teria gostado muito mais de ler este livro se a publicação não padecesse das doenças de que falei atrás. Mas acabo por chegar à conclusão de que nunca consigo julgar desperdiçado o tempo que passo a ler. Mesmo quando essa leitura me suscita opiniões divergentes e eu fico dividida entre o bem e o mal.