Um policial clássico escrito a várias mãos
“QUEM MATOU O ALMIRANTE?”
The Detection Club
Título: Quem Matou o Almirante?
Título original: The Floating Admiral
Autor: The Detection Club
Ano de lançamento: 1931
Editora: Edições Asa II
Publicação: 1ª edição – Junho 2014
Número de páginas: 344
Tradução: Mário Dias Correia
Confesso que já andava com algumas saudades de ler um policial clássico, daqueles em que o objectivo do enredo é simplesmente descobrir quem cometeu o crime, como e porquê. E quando vi que um dos autores deste livro era Agatha Christie, ainda fiquei mais curiosa.
Sendo um clássico no conteúdo, na forma como foi escrito este policial já não o é tanto assim. De facto, “Quem Matou o Almirante?” tem nada mais nada menos do que treze autores (catorze, se considerarmos que um deles é o casal G.D.H. Cole e Margaret Cole), cada um encarregue de escrever um capítulo, e todos eles membros do The Detection Club. Este Clube, de origem algo misteriosa mas que sobrevive até hoje, é constituído por autores de ficção policial do Reino Unido (actualmente tem cerca de sessenta membros), cuja admissão está dependente de cumprirem algumas condições e prestarem um juramento de fidelidade ao Clube, às regras de ficção policial estabelecidas pelo mesmo, e aos leitores. Embora, nas palavras de Dorothy L. Sayers, uma das fundadoras, ele exista “sobretudo com o propósito de jantarmos juntos a intervalos regulares e falarmos de trabalho até às tantas”.
O enredo é basicamente simples, como é habitual nestas novelas: numa típica e sonolenta vilazinha inglesa é encontrado um cadáver num barco à deriva no rio. O inspector Rudge, um também típico polícia inglês de província, vê-se a braços com a complicada tarefa de tentar descobrir quem foi o autor do crime, para o que terá de desenredar uma intrincada meada que envolve suspeitos vários, motivos obscuros, personagens misteriosas, amarras cortadas, horários de marés, peças de vestuário diversas, um jornal e uma chave, e um sem número de outros pormenores que vão adensando a trama à medida que a história progride.
Mas se a história de base promete, tal como a maioria dos policiais clássicos, várias horas de leitura empolgante até ao último capítulo, onde a chave para a solução do crime é finalmente desvendada, na prática o resultado fica bastante aquém do esperado. Depois de um prólogo enigmático e três ou quatro capítulos em que o trabalho detectivesco segue um fio coerente, liderado por um inspector classicamente caracterizado, e cada personagem que surge contribui com novos elementos que adensam o mistério, o enredo começa a descambar à medida que cada autor parece fazer questão, no capítulo com que contribui para o livro, em “baralhar” o cenário a seu bel-prazer e de forma por vezes quase absurda. Há reviravoltas constantes, com factos novos e por vezes pouco credíveis a serem introduzidos em qualquer momento, pistas que parecem prometedoras e importantes num capítulo são descartadas num ápice ou simplesmente esquecidas no capítulo seguinte, e a própria caracterização dos intervenientes é quase constantemente posta em causa não só pelos novos factos que vão surgindo, como principalmente pela atracção que cada autor parece ter por imprimir o seu cunho muito pessoal aos “bonecos” criados para a história, dando prioridade ao seu próprio estilo em detrimento da homogeneidade do livro. Esta “oscilação de humores” é particularmente visível no caso do inspector Rudge, que é afinal de contas a personagem principal do enredo, e cuja personalidade vai apresentando tantas variações de capítulo para capítulo que chega a ficar por vezes irreconhecível.
No capítulo VIII a história já está tão baralhada que Ronald Knox decide ocupar as suas trinta e oito páginas com uma longa e fastidiosa lista de “trinta e nove artigos de dúvida” que se acumularam até ali, o que só piora a situação. São muitas páginas aborrecidas e praticamente desprovidas de interesse para o leitor e que cortam quase completamente a relativa curiosidade que o enredo despertava até essa altura. Poderiam ser eventualmente úteis para os seus colegas escritores que se lhe seguiram, mas na verdade não foi esse o resultado, porque daí para a frente a trama parece tornar-se ainda mais intrincada. Por esta altura, o livro parece um comboio prestes a descarrilar.
O último capítulo, por força das circunstâncias, acaba por ser quase um livro dentro do livro. A meada está tão enredada que não é possível desenleá-la em poucas palavras. Anthony Berkeley precisa de quase setenta páginas para o fazer, e mesmo assim o resultado é pouco mais do que sofrível – mas diga-se em sua defesa que não é possível remendar sem deixar marcas um tecido que tem tantos buracos.
Cada cabeça, sua sentença, e este livro é a prova disso. Apesar de todos os autores, com excepção dos que escreveram os dois primeiros capítulos, terem sido obrigados a entregar com o seu manuscrito a solução que proporiam para finalizar a história, obviamente tendo em conta o ponto em que ela se encontrava quando saía das suas mãos, este pormenor não parece ter contribuído para que o resultado geral do livro fosse melhor. Todas estas soluções são-nos também reveladas em Apêndice e embora umas sejam mais engenhosas ou verosímeis do que outras, a verdade é que não ajudam a aligeirar a imagem global de que este livro poderá ter sido um cativante exercício de escrita para os seus autores mas é incapaz de despertar, mesmo que remotamente, o mesmo interesse em quem o lê.
Estou a ler agora: O Fogo, de Katherine Neville