Por que não concordo com o acordo ortográfico
Uns gritam e insultam, outros defendem a sua dama com unhas e dentes. Outros ainda optam por se deixarem ir com a maré. Já se gastou mais tinta e dinheiro com o novo acordo ortográfico do que o orçamento atribuído anualmente a muitas juntas de freguesia.
A classe governativa portuguesa (e não estou aqui a pontar o dedo a este ou àquele partido) enferma de há uns bons anos para cá de um complexo de pequenez em relação aos países estrangeiros que me irrita profundamente e me preocupa. Aparentemente defendendo que “o que é português é bom”, embarca em iniciativas que são tudo menos benéficas para o nosso país e a nossa identidade cultural específica – na maioria das vezes, iniciativas essas que são dispendiosas, supérfluas e discutíveis. Em detrimento, para nosso mal, de outras decisões em áreas bem mais importantes para o nosso país e quem o habita, decisões de fundo que deveriam ser bem estruturadas, adoptadas e avaliadas até se atingirem os objectivos propostos. E que não o são.
O novo acordo ortográfico é para mim um destes casos. Em vez de se implementarem e incentivarem – mas incentivarem a sério, não em modo faz-de-conta como se tem feito – programas de ensino de bom português (e não, meus amigos, não me refiro ao ensino teórico da gramática e afins, que actualmente atinge as raias do ridículo, de tão complicado que é) e de se estimular o gosto pela leitura e o seu consumo em doses industriais (porque só lendo muito e bom português se aprende bem a escrever e a usar a língua), decidiram as nossas cabeças pensantes aqui há uns anos embarcar nesta aventura que ainda nada nos trouxe de verdadeiramente positivo, e provavelmente nunca trará.
Como podem ver desde o início na coluna lateral deste meu blog, eu não estou de acordo com o acordo ortográfico. Nem com este, nem com nenhum. E vou explicar aqui porquê:
1 – Porque não faz falta um acordo ortográfico. Já são muitos os países que têm o português como língua oficial? São. São muitas as pessoas que o falam e escrevem? São. É preciso arranjar uma forma de unificar a nossa língua, para não andarmos a escrever cada um de sua maneira? Não. E se duvidam, olhem para o inglês. Querem língua mais falada, escrita, usada e arranhada do que o inglês? Querem língua mais viva, flexível e constantemente em evolução do que o inglês? Não me parece que encontrem com facilidade. Na língua inglesa também existe o inglês britânico e o inglês americano (e ainda o canadiano, o australiano, e etc., embora aqui as diferenças sejam mais a nível de vocabulário e pronúncia). E andam os países todos em que o inglês é língua oficial a entrar em acordos ortográficos e preocupados com a possibilidade de a língua morrer ou não evoluir? Não. Então porque é que nós temos obrigatoriamente de o fazer? Com ou sem acordos ortográficos, as diferenças vão sempre existir entre os vários países onde se fala português – mesmo que não na escrita, pelo menos ao nível do vocabulário e da pronúncia. Não é por termos um acordo ortográfico que os brasileiros vão entender-nos melhor quando falamos, ou que angolanos ou são-tomenses vão passar a consumir mais televisão portuguesa do que brasileira. Não é um acordo ortográfico que nos vai escancarar magicamente as portas do consumo de produtos editoriais portugueses no Brasil, na Guiné ou em Moçambique. O dinheiro que se tem gasto a implementar o novo acordo ortográfico teria sido bem mais utilizado a apoiar (muito mais) a internacionalização da nossa língua e dos nossos escritores – isto só para dar um exemplo.
2 – Porque é disparatado estar a implementar um acordo ortográfico que ainda não foi oficialmente adoptado (e se calhar nunca vai ser) por vários dos países de língua oficial portuguesa. Haverá realmente algum interesse prático em mexer tanto na nossa língua aqui em Portugal, quando na realidade os outros países que supostamente também aderiram não parecem estar assim tão empenhados quanto nós?
3 – Porque a verdade é que, digam o que disserem, foi o português de Portugal que saiu mais afectado deste acordo. Mas afinal, qual é o país de origem do português? O nosso, ou outro qualquer? Se tem de haver uma aproximação, não seria mais lógico que fosse em maior percentagem ao nosso português, que à partida estará menos “modificado” em relação à língua original? É claro que todas as línguas vão evoluindo ao longo dos tempos, e o português deveria ser realmente mais flexível sobretudo no que diz respeito às palavras novas que surgem como resultado da evolução tecnológica e científica. Mas isso não justifica que agora o português de Portugal passe a adquirir um papel secundário em relação ao português que se fala noutros países.
4 – Porque se é verdade que algumas (muito poucas) alterações introduzidas pelo novo acordo terão alguma razão de ser do ponto de vista linguístico e na realidade até nem chateiam quase ninguém, mais verdade é que a grande maioria não tem qualquer justificação decente. Se a ideia é adaptar a grafia à pronúncia, então vamos escrever tudo tal como pronunciamos? Neste caso passaríamos a ter em inúmeras palavras não dupla grafia, como já acontece, mas tripla ou quádrupla – há palavras que têm várias formas de pronúncia, consoante o país. Além disso, seguindo este raciocínio muito mais seria necessário mexer na nossa escrita, pois não faria sentido alterar umas palavras para se escreverem como se pronunciam e não alterar outras. Sem entrar em grandes pormenores, facilmente se compreende que, por exemplo, o pobre “h” iria quase desaparecer da nossa escrita…
5 – Porque este acordo ortográfico não tem pés nem cabeça. É verdade que se tem lido por aí muita barbaridade em relação a supostas alterações que na realidade não estão previstas, e à conta disto muita asneira se tem escrito. Mas mesmo descontando estes exageros, digam-me lá como é que eu distingo “pára” de “para”? Pior ainda: como é que uma criança pequena que está a aprender a ler vai distinguir uma palavra da outra, uma vez que ainda não tem “bagagem” linguística suficiente que lhe permita fazer intuitivamente essa destrinça em qualquer texto? Se até para mim não é óbvio logo à primeira vista… E como é que ela vai distinguir facilmente “acto” de “ato”? E terá lógica eu escrever “Egito” quando falo do país, mas “egípcios” se falo dos seus habitantes?
Dito isto, eu gostava que alguém conseguisse explicar-me – mas explicar mesmo, com argumentos perceptíveis e verdadeiros – o porquê deste acordo e a lógica subjacente a tantas e tão disparatadas alterações. Talvez então eu conseguisse finalmente concordar com o acordo. Até lá, não contem comigo.