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Gene de traça

Livros e etc.

Ilhas do Norte

por Ana CB, em 05.01.17

 

Estar doente é das coisas mais aborrecidas e despropositadas que podem acontecer, sobretudo se a doença envolver febre, dores e/ou má disposição – e o supra-sumo da barbatana é quando envolve tudo isso. A única coisa menos má de estar doente é ter mais tempo para ler, quando não estou simplesmente em estado vegetativo ou a dormir, e a leitura (e um ou outro filme ou série na tv) é que me salva de morrer de tédio nestas alturas.

 

Já devem estar a perceber onde quero chegar. Passei a minha silly season do ano que acabou – não, para mim não foi o Verão mas sim a semana entre o Natal e o Ano Novo – enfiada em casa a “curtir” uma bela gripe, alternando entre a cama e os sofás, e sem energia para nada (mas sobre isto já desabafei neste post). Como não me apetecia ler nada que fosse muito complicado ou pesado, fui buscar à minha de pilha de livros TBR um policial nórdico, “Cinza e Poeira”, de Yrsa Sigurdardóttir, a escritora islandesa de quem também li há algum tempo “O Silêncio do Mar”. Depois, por coincidência, à procura de qualquer coisa interessante para me distrair num momento em que me sentia demasiado apática até para ler, dei com uma série também policial que tem estado a passar na Fox Crime, “Shetland”, e fiquei agarrada.

 

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“Cinza e Poeira” é uma história de mistério que gira à volta de acontecimentos passados nas ilhas Westmann (situadas junto à costa sul da Islândia) na altura da erupção do vulcão Eldfell, em 1973. “Shetland” é baseada na série de livros policiais de Ann Cleeves cujos enredos têm como paisagem as ilhas com o mesmo nome (e que se localizam a norte da Escócia). Histórias diferentes que se passam em cenários parecidos, o livro e a série acabaram assim por se complementarem no meu imaginário e foram uma mais-do-que-excelente distracção para estes meus dias de “prisão domiciliária”. Com a vantagem acrescida de estimularem a minha veia de viajante – e à minha já antiga vontade de conhecer a Islândia juntaram-se agora mais algumas ilhas do norte da Europa.

 

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Título: Cinza e Poeira

Título original: Aska

Autor: Yrsa Sigurdardóttir

Ano de lançamento: 2010

 

Editora: Quetzal

Publicação: 1ª edição – 2011

Número de páginas: 512

Tradução (do inglês): Lucília Filipe

Revisão: Pedro Ernesto Ferreira

 

Trinta anos depois da erupção do Eldfell, Markús Magnússon regressa à casa da sua infância, agora já liberta das cinzas vulcânicas que a cobriram durante todos esses anos. Vai recuperar a caixa que uma amiga lhe tinha pedido para guardar na altura, mas ao fazê-lo descobre que essa caixa contém uma cabeça humana e que na cave também se encontram três cadáveres de pessoas desconhecidas. Quando, logo a seguir, a amiga aparece assassinada, Markús passa a ser o principal suspeito e Thóra Gudmundsdóttir, a sua advogada, vai ter de desvendar obscuros segredos do passado para resolver o mistério de tantas mortes e conseguir provar que o seu cliente é inocente.

“Cinza e Poeira” prendeu-me logo desde o início. Partindo de um acontecimento verídico, Yrsa Sigurdardóttir constrói um mistério em que vai largando, aqui e ali, pormenores macabros, fragmentos da história vistos pelos olhos de personagens secundárias, descrições de ambientes, pistas que não conseguimos discernir se são ou não importantes, tudo intercalado com episódios comezinhos da vida diária de uma vulgar advogada, contados com bastante humor e sentido crítico. As personagens principais da história têm personalidades variadas e fogem aos clichés habituais – e uma das mais engraçadas é sem dúvida Bella, a secretária “gótica” de Thóra, refilona e mal-humorada mas surpreendentemente perspicaz e por vezes mais eficiente do que o expectável.

Apesar de cheia de voltas, nós e becos sem saída (reconstruir acontecimentos passados trinta anos, quando a maioria das pessoas envolvidas já morreu, perdeu a memória ou era ainda demasiado jovem para se lembrar, não se revela tarefa fácil), a trama deste livro é perfeitamente verosímil e todos os factos aparentemente incongruentes acabam por se ir encaixando na história de forma lógica e satisfatória. E através dos comportamentos de várias personagens, o livro dá-nos ainda a conhecer algumas características da sociedade islandesa, o que é um motivo adicional de interesse. É certo que consegui perceber alguns dos mistérios ainda antes de chegar ao fim do livro, mas nem assim o final deixou de me surpreender – e se há coisa de que eu gosto num livro é não conseguir adivinhar o final.

A minha única nota menos boa vai para o trabalho de tradução e revisão. Definitivamente, vírgulas a mais num texto estragam bastante o gozo da leitura, principalmente quando esse uso não só é mau do ponto de vista do estilo como muitas vezes errado do ponto de vista gramatical. Tal como é incomodativa a mistura de forma incorrecta de diferentes pretéritos numa mesma frase ou parágrafo (mas sobre isto farei um destes dias um post especial). Traduzir bem não é traduzir à letra e todos sabemos que o português é gramaticalmente mais complexo que o inglês. Entre outras coisas, há que ter cuidado com os tempos dos verbos. E a revisão de um livro também serve para detectar estes usos mais baralhados (e baralhadores) da língua.

 

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Título: O Silêncio do Mar

Título original: Brakiđ

Autor: Yrsa Sigurdardóttir

Ano de lançamento: 2011

 

Editora: Quetzal

Publicação: 1ª edição – Julho 2016

Número de páginas: 448

Tradução (do inglês): Miguel Freitas da Costa

Revisão: Carlos Pinheiro

 

A história de “O Silêncio do Mar” é contada em dois tempos: o presente, que começa quando um iate de luxo chega à marina de Reiquiavique sem que haja a bordo uma única pessoa, e o passado, que vai revelando o que se passou a bordo desse iate desde que saiu de Lisboa com destino à Islândia.

Mais uma vez, cabe à advogada Thóra Gudmundsdóttir tentar deslindar a razão do desaparecimento dos sete ocupantes do iate, entre eles um casal e as suas duas filhas gémeas de quatro anos. Com um toque macabro, nesta história as mortes vão sendo descobertas a ritmo de conta-gotas, tanto no passado como no presente, e o espectro do sobrenatural paira constantemente sobre os acontecimentos narrados a bordo do iate. Há um tom de tristeza generalizada em todo o livro, e se por um lado as revelações finais vêm iluminar a situação com uma dose generosa de realidade, por outro lado confirma-se a irreversibilidade de circunstâncias desde o início suspeitadas.

Apesar de ter gostado de “O Silêncio do Mar” – o primeiro livro que eu li desta escritora – não senti que fosse terrivelmente empolgante. Talvez tenha sido o tal ambiente de tristeza que perpassa por toda a história, ou talvez o facto de por vezes a acção parecer arrastar-se mais do que o esperado. Mas achei o enredo original, e bem conseguida a forma de explicar no final o encadeamento das situações.

 

No entanto, é sobretudo por causa de “Cinza e Poeira” que Yrsa Sigurdardóttir faz agora parte do grupo de autores de histórias policiais que quero continuar a ler.

 

Interessante também é a revelação da escritora, numa entrevista que deu ao Público em Junho de 2011, de que a paisagem onde se vai desenrolar a história é o primeiro elemento que decide quando começa a escrever um livro.

“(…) normalmente escolho a paisagem antes de ter a história. É a paisagem que me inspira o tipo de crime, por exemplo, ou qual o acontecimento que ali vai decorrer. É quase como se eu imaginasse a história como um filme cujo guião foi escrito de propósito para aquele cenário, que é tão ou mais importante do que aquilo que lá se passa.

 

 

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Produzida pela BBC Scotland, os primeiros episódios de “Shetland” foram exibidos em 2013, mas só agora é que estamos a ter oportunidade de ver em Portugal as três (curtas) temporadas desta série, mais especificamente no canal Fox Crime.

E acreditem que vale a pena ver! A produção é excelente (ou não fosse da BBC…), a realização não fica atrás, os actores convencem-nos (alguns deles, sobretudo os convidados especiais, são conhecidos do cinema e de outras séries), e a cinematografia é magnífica. Esqueçam as cenas de pancadaria a cada cinco minutos, as personagens femininas que resolvem casos em cima de saltos de 15 cm e trabalham 20 horas por dia sem nunca terem olheiras ou um cabelo fora do sítio, os décors arrumadinhos e tão limpos que até se pode comer no chão. Aqui tudo tem um ar real: as roupas amarrotam-se, as unhas sujam-se, e as personagens têm (pelo menos alguma) vida pessoal. Sim, às vezes também há tiros e correrias, e há cenas macabras, e os investigadores têm uma capacidade de trabalho inextinguível e por vezes o dom da ubiquidade. Mas são completamente credíveis, têm sotaque (e que sotaque!), têm barriga, cabelos brancos, barbas por fazer.

Depois há o cenário. O fantástico e peculiar cenário das ilhas Shetland e da Escócia: ventoso, cinzento, sem árvores, mas com uma beleza de cortar a respiração. Há muitas cenas filmadas a partir de longe ou em perspectiva aérea, e a banda sonora está em sintonia com o ambiente.

Embora as personagens principais se mantenham em todos os episódios, cada caso tem um enredo diferente dos outros o suficiente para não enjoar, e os níveis de mistério e de revelações estão bem doseados ao longo de cada episódio, evitando que o aborrecimento se instale. Os argumentistas fazem também um bom uso da História e das características culturais das Shetland, que são incorporadas na trama de modo a fornecerem-lhe uma boa e credível base de apoio – e mais motivos de interesse. Apesar da produção britânica e de ser baseada nos livros da premiada escritora inglesa Ann Cleeves, o tom geral da série aproxima-se mais dos policiais nórdicos do que dos tradicionais mistérios ingleses “à hora do chá”.

Ficam aqui dois trailers da série, em jeito de aperitivo:

 

 

E pronto. Fazendo um balanço da minha semana gripal, posso dizer que não foi um desperdício completo: uma leitura que me entusiasmou (Cinza e Poeira), uma série de que fiquei fã (Shetland), e mais uma escritora (Ann Cleeves) a descobrir num futuro próximo. Os meus genes de traça e de viajante estão definitivamente apaixonados pelas ilhas do Norte.

 

 

J. K. Rowling

por Ana CB, em 24.11.16

 

Falar de Joanne Rowling e do seu sucesso internacional como escritora talvez seja um pouco repetitivo – parece que tudo ou quase tudo já foi dito sobre ela, por vezes até à exaustão, invenções misturadas com factos reais. Mas não há como ignorar o seu talento para a escrita de boas histórias.

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Depois de Agatha Christie e sensivelmente a par de Enid Blyton, J. K. Rowling é a escritora inglesa de ficção mais vendida em todo o mundo. Aliás, estima-se que “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, o primeiro livro da mais-que-famosa série, tenha já vendido 107 milhões de cópias – ultrapassando “Convite para a Morte”, o livro mais vendido de Agatha Christie (também publicado com o título “As Dez Figuras Negras”, mais semelhante ao inglês, “Ten Little Niggers”). No entanto, apesar de publicado originalmente em 1997, só em Outubro de 1999 foi impressa a primeira edição portuguesa de “Harry Potter e a Pedra Filosofal”.

 

Apaixonada pela leitura que sou e sempre fui, tentei transmitir essa paixão ao meu filho quase desde que ele nasceu – ainda bebé, teve direito a um livro de plástico para brincar no banho (era, mesmo a propósito, sobre um peixinho), e a colecção de livros que tinha no quarto já era invejável ainda antes de saber ler. Teve a sorte de nascer numa altura em que a literatura infantil estava em franca expansão, tanto em quantidade como em qualidade, pelo que não havia falta de material para alimentar o seu (felizmente!) crescente interesse.

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Sempre à procura de novidades apropriadas para a idade dele, foi no ano 2000 que um artigo numa revista me chamou a atenção para a série Harry Potter. O terceiro livro (“Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban”) tinha acabado de ser lançado em Portugal, mas à cautela comprámos-lhe apenas o primeiro (que já ia na terceira edição), não fosse dar-se o caso de ele não apreciar a história. Receios infundados: leu o livro num fim-de-semana e não descansou enquanto não lhe comprámos os outros dois, que também devorou num ápice. Não sei se foi por ter na altura a idade dos heróis, se porque estava com fome de novidades (já tinha lido tudo o que havia da colecção Uma Aventura, várias das histórias dos Cinco, e outros no género), a verdade é que a saga dos aprendizes de feiticeiro lhe caiu no goto e ele ficou fã. E de tal maneira que depois do quarto livro passou a ser incapaz de esperar pela edição portuguesa e passou a “obrigar-me”, de cada vez que saía um livro novo, a ir à meia-noite à livraria mais próxima comprar um exemplar em inglês mal ele era posto à venda.

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Quanto a mim, só anos mais tarde é que tive a curiosidade de ler alguns destes livros e achei a escrita dela surpreendentemente boa, não tanto pelas histórias em si – que são obviamente destinadas a um público juvenil, apesar do ambiente de violência e morte subjacente e de traços de grande maturidade nalgumas personagens – mas mais até pelo nível de linguagem e da estrutura sintáctica, que é bem menos simplista do que se poderia esperar.

 

Apesar do sucesso, da celebridade e da fortuna que os sete livros da série Harry Potter lhe trouxeram e fizeram com que passasse de muito pobre a muito rica no espaço de cinco anos, Joanne Rowling não se deixou ficar quieta e partiu para outros géneros de escrita. Em Setembro de 2012, também como J. K. Rowling (o “K.” não faz parte do seu nome verdadeiro, pediu-o “emprestado” à sua avó paterna Kathleen), foi publicado “Uma Morte Súbita”, o primeiro livro de ficção destinado ao público adulto. Ao contrário do que o título parece dar a entender, não é um policial, embora por toda a história perpasse um certo ambiente de mistério, de coisas que apenas são subentendidas, de tragédia. O título em inglês é “The Casual Vacancy”, que poderá ser traduzido mais à letra como “A Vaga Fortuita”, e o enredo gira à volta dos efeitos provocados pela morte repentina de um membro da Associação Comunitária de uma pequena terrinha em Inglaterra, particularmente pelo facto de o seu lugar na referida Associação ficar vago e ter de vir a ser preenchido. É um bom livro, embora algo triste, e gostei bastante de o ler. Joanne Rowling retrata bem o ambiente de uma cidadezinha de província que um acontecimento vulgar, embora inesperado, abala profundamente a vários níveis – razão pela qual acaba por vir à superfície tudo o que há de melhor e pior nos seus habitantes, num crescendo de dramatismo que acaba por redundar numa verdadeira guerra.

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Em Abril de 2013, a editora inglesa Sphere Books publicou e distribuiu 1500 cópias de um livro policial com o título “The Cuckoo’s Calling” escrito por Robert Galbraith, que se soube desde o início ser um pseudónimo – embora não se soubesse de quem. O segredo não conseguiu ficar guardado durante muito tempo e em Julho do mesmo ano o jornal Sunday Times divulgou que a escritora por detrás do pseudónimo era Joanne Rowling, depois de uma fuga de informação via Twitter vinda de pessoas ligadas a uma firma de advogados com quem a escritora trabalhava. Em entrevista recente à emissora de rádio americana NPR, Joanne revelou que tinha sido para ela “um prazer muito privado” escrever sob pseudónimo, sobretudo porque o facto de ser a autora de Harry Potter colocava sobre si uma enorme pressão e ela tinha vontade de criar algo bastante diferente, que tivesse sucesso ou fracasso por mérito próprio.

 

O livro foi publicado em Portugal pela Presença em Outubro do mesmo ano com o título “Quando o Cuco Chama”. Com toda a publicidade gerada pela polémica da descoberta intempestiva da verdadeira autora, o lançamento teve obviamente honras de destaque nas livrarias e na imprensa. Seguiram-se-lhe “O Bicho-da-Seda” em Janeiro de 2015 e “A Carreira do Mal” em Outubro deste ano, que acabei agora de ler e despertou em mim a vontade de escrever este post (mais ainda porque descobri entretanto que ainda existe quem goste de ler mas não saiba que Robert Galbraith e J.K.Rowling são uma e a mesma pessoa).

 

Estes três livros têm em comum os mesmos protagonistas: Cormoran Strike, um detective particular e ex-investigador da Polícia Militar, que perdeu uma perna no Afeganistão e é filho ilegítimo de um famoso cantor rock; e a sua assistente Robin Ellacott, rapariga de província desde sempre fascinada pelo trabalho de investigação policial e dotada de grande perspicácia e imaginação. Ambos têm um passado (e presente) atribulado e cheio de fantasmas, e deixam que os seus sentimentos, inseguranças e intuição interfiram nas investigações de que são encarregados – o que por vezes os coloca em perigo, mas sempre (obviamente!) com bons resultados. Em volta deles gravitam mais algumas personagens secundárias: irmãos e irmãs, pais, noivo e namoradas, agentes da Polícia, cada um com características de personalidade bem definidas e que servem sobretudo para agitar a vida pessoal dos protagonistas e para enriquecer a história de cada livro com acontecimentos e pormenores, muitos deles à margem da investigação.

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Nesta série – que a autora já admitiu ir ter nove livros no total, mais dois do que a saga Harry Potter – Cormoran Strike é o arquétipo do anti-herói que só o é aparentemente, pois na realidade acaba por se revelar um herói verdadeiro: homem destemido e defensor da justiça e da verdade, reservado e respeitador mas cheio de traumas de infância e com um passado atribulado, a que se junta a amargura provocada pelo acidente que lhe custou uma perna e a adorada carreira militar, e também a sombra de uma antiga história de amor que foi tudo menos pacífica.

 

Robin é o seu contraponto, a típica rapariga vinda de uma família tradicional, sensível, bem comportada e prestes a casar. Em comum com Strike tem a inteligência, a curiosidade, o gosto pela investigação, e um acontecimento traumatizante no seu passado (que só ficamos a conhecer no terceiro livro).

 

Como é normal acontecer em todos os enredos que envolvem protagonistas de sexos diferentes, e apesar de Robin estar noiva, existe entre ambos uma implícita atracção, que nenhum deles assume mas vai aumentando e tornando-se mais perceptível em cada livro. Esta negação, por parte dos protagonistas, de sentimentos que parecem mais que óbvios para quem lê é logicamente mais um factor de interesse e de “suspense”, inteligentemente pensado para nos manter na expectativa e a ansiar pelo próximo livro.

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“Quando o Cuco Chama” foi para mim uma agradável surpresa. Li-o assim que saiu e restaurou a minha fé nos policiais, numa altura em que eu andava um bocado arredada do género (apesar de ser um dos meus favoritos) e achava que depois de Stieg Larsson já pouco se conseguiria fazer de diferente. O enredo e as personagens criadas pela escritora despertaram o meu interesse e mantiveram-me agarrada ao livro sem ponta de aborrecimento até ao final que, como convém, é surpreendente. Não vou dizer que Joanne Rowling reinventou o policial – nada disso. Muito pelo contrário, simplesmente pegou nos elementos clássicos de um romance policial e vestiu-lhes uma roupa nova, devidamente actualizada para o contexto dos nossos dias, misturando-os com uma pitada de violência q.b. e um pouco de drama pessoal e social (talvez inspirada pelos policiais nórdicos…) para evitar que as personagens sejam completamente estereotipadas. O resto ficou por conta da sua própria imaginação que, como deu para perceber nos seus primeiros livros, é bastante produtiva.

 

Não posso dizer que “O Bicho-da-Seda” me tenha causado a mesma empolgação. Achei a história algo menos interessante e mais confusa do que a do primeiro livro, e fiquei ligeiramente (mas só ligeiramente) decepcionada. Mas “A Carreira do Mal” obliterou completamente essa impressão menos boa com que tinha ficado. É, quanto a mim, o melhor dos três livros – e isto apesar de ter sido o único em que consegui deduzir antecipadamente quem seria o “mau da fita”. Mais movimentado, violento e dramático do que os anteriores, o enredo deste livro gira à volta da vida pessoal dos protagonistas da série. Sabe-se desde o início que o criminoso é alguém que procura vingar-se de Cormoran, pois de vez em quando é introduzido um capítulo em que o narrador é o próprio assassino. Apercebemo-nos também de que essa vingança irá envolver Robin como vítima, enquanto se desenrola em paralelo o drama do seu casamento iminente, cuja concretização já de si periclitante fica seriamente comprometida pela revelação de acontecimentos passados. Aliás, desde o primeiro livro que a antipatia por Matthew, o noivo de Robin, vai propositadamente aumentando, e de certeza que não sou a única a torcer para que ela abra os olhos e perceba finalmente que o seu noivo é um autêntico traste.

 

E sobre os livros não vou dizer mais nada a não ser isto: são um excelente entretenimento, muito acima da média, e aconselho vivamente a sua leitura.

 

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O êxito da série Cormoran Strike levou a que, como seria de esperar, os livros já estejam a servir de base para uma série televisiva, cujas filmagens tiveram início este mês em Londres. Strike vai ser interpretado pelo actor britânico Tom Burke (já conhecido das recentes séries “Os Mosqueteiros” e “Guerra e Paz”), enquanto que o papel de Robin foi confiado à encantadora Holliday Grainger (que encarnou Lucrécia na série “Os Bórgia”). Podem ir seguindo as novidades pelo Twitter (https://twitter.com/RGalbraith). Como fã de séries inglesas que sou, espero sinceramente que não demorem muito tempo para a transmitir.

 

E já agora, que venha depressa o próximo livro.

 

Para conhecerem mais pormenores sobre Joanne Rowling e as suas obras aconselho a visita aos sites oficiais da escritora: http://www.jkrowling.com/ e http://robert-galbraith.com/.

 

 

Uma matrioska na montanha-russa

por Ana CB, em 23.07.16

 

A VERDADE SOBRE O CASO HARRY QUEBERT

Joël Dicker

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Título: A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert

Título original: La vérité sur l’affaire Harry Quebert

Autor: Joël Dicker

Ano de lançamento: 2012

 

Editora: Alfaguara

Publicação: 1ª edição – Novembro 2015

Número de páginas: 696

Tradução: Isabel St. Aubyn

Revisão: Cristina Correia, Eurídice Gomes e Manuel Eugénio Fernandes

 

 

Não há muitos livros de 700 páginas em caracteres de dimensão reduzida que actualmente eu consiga ler em 3 dias e pouco – sendo que um desses dias foi um dia útil, ou seja, estive a maior parte do dia a trabalhar. Mas foi o que aconteceu com este livro. “Viciante” é o adjectivo que mais ouvi quando me falaram dele, e é absolutamente adequado. Mas não chega para o definir.

 

Aliás, definir este livro não é tarefa linear. À primeira vista classifica-se como um policial – afinal, o enredo gira todo à volta do mistério do desaparecimento/morte de uma adolescente, ocorrido nos anos 70, e a pergunta-chave que queremos ver respondida é mesmo: afinal, quem matou Nola Kellergan? Mas à medida que fui avançando na leitura comecei a encontrar mais “sumo” na história.

 

Em primeiro lugar, o livro fala-nos também da escrita e do ofício de escritor. No início de cada capítulo encontramos uma espécie de tutorial para escrever uma história que agarre os leitores, que seja interessante, truques e métodos para que um livro tenha sucesso. E todos eles estão utilizados inteligentemente pelo próprio Joël Dicker neste “A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert” – a prova de que funcionam é o sucesso do livro. Estes conselhos são dados por um dos actores principais da história, o escritor/professor Harry Quebert, ao narrador principal da acção, o seu ex-aluno e também escritor Marcus Goldman. A relação entre eles ilustra em certa medida (com as devidas diferenças) o mito de Pigmalião, com o professor a “esculpir” o talento bruto que consegue ver no seu aluno, e que é também um outro aspecto interessante da história.

 

Em segundo lugar, este livro é no fundo um romance. A história de um amor quase impossível, com laivos de “Lolita”, em que um homem mais velho se apaixona por uma adolescente miúda e vice-versa. E várias outras histórias de amor e desamor emaranhadas na principal, em que A é amada por B mas ama C, que ama D, que é amada por E… tudo isto misturado num cocktail que ainda tem como ingredientes inúmeros outros pequenos dramas pessoais, segredos escondidos atrás de estores venezianos que se vão entreabrindo lentamente, revelados a conta-gotas, como convém (para manter o interesse) – pois nada do que parece é, e o pano de fundo da história é uma teia de enganos. E os heróis têm todos pés de barro. Tal como nós.

 

Mas uma teia bem urdida, é o que vos digo, pois no final tudo se encaixa. Ao longo da leitura fui compondo teorias umas atrás das outras, arranjando explicações possíveis para este ou aquele facto, tentando perceber o porquê de algumas incongruências… Trabalho vão. Se acertei nalguns pormenores, no geral fiquei muito aquém da explicação que só nos é dada mesmo nas últimas páginas, depois de vários falsos finais – sempre seguidos de mais uma reviravolta. Este livro parece uma matrioska às voltas numa montanha-russa. Com loops e tudo.

 

A verdade é que há já bastante tempo não me acontecia ser acometida por esta febre de ler um livro quase ininterruptamente. Não é um “livrão”, não é uma obra-prima da literatura ou material para um Nobel – mas é um livro excelente, entretenimento puro, bem concebido, bem escrito, e eu gostei muito, mesmo muito de o ler. Um livro aparentemente simples, mas que de simples afinal não tem nada.

 

Uma pedrada no charco da literatura moderna. Leiam e depois digam-me se não concordam.

 

 

Crime quente num país frio

por Ana CB, em 15.04.16

 

AURORA BOREAL

Åsa Larsson

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Título: Aurora Boreal

Título original: Solstorm

Autor: Åsa Larsson

Ano de lançamento: 2003

 

Editora: Booket – Editorial Planeta

Publicação: 1ª edição – Maio 2013

Número de páginas: 382

Tradução: (não indica)

Revisão: Fernanda Fonseca

 

Com a leitura de “Aurora Boreal” fiz as pazes com os policiais nórdicos. Eu explico. Depois da surpresa entusiasmante que foi a trilogia Millennium do Stieg Larsson (está na minha lista de favoritos e já falei das suas adaptações ao cinema neste post), tenho andado a espaços a ler obras de autores que se enquadram no estilo a que se convencionou chamar nordic noir (policiais nórdicos, na nossa língua). Mas ou tenho tido azar, ou então estou a ficar demasiado esquisita, porque até agora os ditos cujos que escolhi para a “experiência” têm sido algo desapontadores. Não fiquei particularmente fã de Camilla Läckberg, nem de Jo Nesbø, e Mons Kallentoft também não conquistou a minha simpatia. Mas não me interpretem mal, não é que os considere maus escritores, ou que os livros que li sejam completamente sofríveis. Nada disso. Simplesmente não me senti “agarrada” durante a sua leitura, não me entusiasmaram a ponto de querer ler mais e mais.

 

Por sorte, este livro de Åsa Larsson veio inverter um bocadinho o sentido da opinião que eu estava a formar sobre os agora tão difundidos (e tão na moda!) policiais nórdicos. Não sendo um livro a que eu possa chamar excepcional, gostei bastante de o ler e conseguiu prender a minha atenção e o meu interesse até ao fim.

 

A história é simples: um assassínio com pormenores macabros é cometido numa comunidade algo fechada na região mais a norte da Suécia; a vítima é um famoso líder religioso, e o crime atinge contornos mediáticos. Entre o potencial aproveitamento da situação por alguns e os conflitos emocionais latentes de outros, o enredo vai-se desenrolando e revelando a pouco e pouco segredos escondidos, comportamentos divergentes e sentimentos de culpa não resolvidos. A noite quase constante, o frio e a neve são também protagonistas da história, onde a “heroína” é uma jovem advogada que regressa à sua cidade-natal para tentar apoiar a irmã do pregador assassinado, ambos seus amigos na juventude. Os esforços que desenvolve para resolver o crime são contrariados pelos membros da comunidade religiosa, da qual ela própria tinha sido expulsa alguns anos antes, e a coadjuvá-la tem apenas uma polícia fora do vulgar.

 

A escritora consegue neste livro um bom equilíbrio entre a forma como descreve o ambiente psicologicamente “pesado” em que a história decorre e os momentos de acção mais intensa. Apesar da chave para a resolução do homicídio começar a ser desvelada algum (bastante) tempo antes do final e de se perder um pouco do factor imprevisibilidade, existe mesmo assim um certo toque de surpresa no modo como se resolve o mistério e como depois o livro termina.

 

Gostei da escrita de Åsa Larsson, que não é nem demasiado simples a ponto de se tornar desinteressante, nem demasiado floreada a ponto de se tornar enjoativa. “Aurora Boreal” é o primeiro livro da série Rebecka Martinsson, que conta com cinco no total, todos já editados em português.

 

Uma das particularidades dos livros policiais nórdicos é a brutalidade e até mesmo impiedade dos crimes que dão o mote a cada história, o contraste entre o carácter quase passional dos homicídios e a frieza habitualmente associada aos habitantes dos países do norte da Europa. Esta aparente incongruência é sem dúvida uma das razões para o recente mas já enorme sucesso desta corrente literária que está a conquistar cada vez mais adeptos, e que mais não faz do que mostrar que as forças e as fraquezas que nos tornam humanos são transversais a todas as pessoas: por baixo de um temperamento aparentemente gélido pode existir por vezes um vulcão prestes a explodir.

 

 

 

As personagens quase desconhecidas de Agatha Christie

por Ana CB, em 13.04.16

 

Agatha Christie é a romancista mais lida desde sempre, e estima-se que já tenham sido vendidos mais de 4 mil milhões de exemplares dos seus livros em todo o mundo. Famosa sobretudo pelos seus romances e contos policiais, deu vida a duas figuras únicas no género e tão famosas quanto a sua criadora: Hercule Poirot e Miss Marple. Contudo, nos 66 romances policiais 150 contos e 19 peças de teatro que escreveu, Agatha Christie criou também outras figuras igualmente deliciosas e memoráveis, embora muito menos conhecidas; e é delas que hoje quero falar.

 

Descobri Agatha Christie no início da adolescência, quando lia tudo o que aparecesse lá por casa e tivesse folhas escritas e uma capa, mesmo que não fosse propriamente para a minha idade. Lembro-me das capas de dois livros, uma com muito azul e a outra para mim algo assustadora, mais ainda porque pertenciam à colecção Vampiro, nome que na minha imaginação eu associava a histórias de terror – porque naquela altura os vampiros ainda não eram bonzinhos nem estavam na moda, e eu era uma miúda facilmente impressionável.

O mistério do comboio azul 1.jpg   O mistério do comboio azul 1.jpg

 

Estes antiquíssimos exemplares ainda andam lá pelas estantes da casa dos meus pais, que eles (a quem sairia eu com este hábito de não me desfazer destas coisas?) também têm a mania de não deitar livros fora.

Eis a razão por que “O Mistério do Comboio Azul” foi o primeiro livro da Agatha Christie que li; e gostei tanto que logo a seguir ultrapassei os meus preconceitos em relação à capa “angustiante” de “O Natal de Poirot” e não descansei enquanto não o li também. Anos mais tarde, a Livros do Brasil iniciou a publicação da obra completa da autora na sua colecção Vampiro Gigante, com dois títulos por livro, e claro que (como seria de prever) sou a feliz possuidora de todos estes livros, do n.º 1 ao n.º 40.

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E foi precisamente no volume 1 da colecção que fiquei a conhecer o casal de “detectives/espiões/aventureiros” mais engraçado da história da literatura policial:

 

Tommy & Tuppence

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Em “O Adversário Secreto”, publicado em 1922, os dois velhos amigos Prudence (“Tuppence”) Crowley e Thomas (“Tommy”) Beresford encontram-se por acaso numa estação de metro em Londres, em pleno rescaldo da Primeira Guerra Mundial. Ambos desempregados, decidem formar uma empresa pouco convencional especializada em investigações, a que dão o nome de Young Adventurers Ltd. Anunciam-se como “dispostos a fazer qualquer coisa e ir a qualquer lado”. Tuppence é uma força da natureza, e o carácter mais ponderado de Tommy é o seu contraponto perfeito. Muito perigo, muita acção e bastante humor neste primeiro livro.

 

Ao todo, este intrépido casal é o protagonista de cinco livros, escritos com um intervalo de vários anos entre cada um:

1922 - O Adversário Secreto (The Secret Adversary)

1929 – O Homem que Era o N.º 16 (Partners in Crime, dividido em várias histórias independentes)

1941 – Tempo de Espionagem (N or M?)

1968 – Caminho para a Morte (By the Pricking of My Thumbs)

1973 – Morte pela Porta das Traseiras (Postern of Fate)

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Os livros com as “aventuras” de Tommy & Tuppence têm algumas particularidades Interessantes, a primeira das quais o facto de as histórias se passarem em tempo real, isto é, as personagens envelhecem ao longo dos anos. No primeiro livro são dois jovens, no último um casal já idoso que decide gozar a reforma numa nova cidade.

Em “O Homem que Era o N.º 16”, Tommy & Tuppence resolvem o caso de cada uma das histórias à maneira de um detective de romances policiais diferente.

Na totalidade, os cinco livros protagonizados por este casal abrangem todo o período da carreira literária da escritora.

 

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Harley Quin

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“O Misterioso Mr. Quin” é uma personagem fugidia e intrigante, que gosta de corações apaixonados e ajuda um “very British” Sr. Satterthwaite a resolver vários mistérios nos contos narrados neste livro (que faz parte do volume 6 da minha colecção). É a única obra da escritora dedicada a uma personagem fictícia, que se inspirou no Arlequim da Commedia dell’Arte para criar aquilo que ela própria definiu, na sua Autobiografia, como “uma figura que apenas entrou numa história – um catalisador, não mais – a sua mera presença afectava os seres humanos”. Um toque de sobrenatural no diversificado mundo misterioso criado por Agatha Christie, ela própria uma mulher com alguns curiosos enigmas na sua vida.

 

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Parker Pyne

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O volume 11 da colecção dedicada a Agatha Christie inclui o livro “Parker Pyne Investiga”, que é também um conjunto de várias pequenas histórias, cuja personagem principal se assume como um “especialista do coração”. Funcionário público reformado, Parker Pyne resolve dedicar-se a curar a infelicidade das pessoas usando meios pouco convencionais, frequentemente “fabricando” situações que irão ajudar a resolver os problemas dos que o procuram, por vezes sem eles sequer darem por isso. Os episódios protagonizados por Parker Pyne têm aqui e ali pontos de contacto com outras histórias onde a estrela é o detective Hercule Poirot, seja pela sua localização ou título (como “Morte no Nilo”, por exemplo), seja pelas personagens secundárias que gravitam em torno de um e outro (como Miss Lemon ou a “alter ego” de Agatha Christie, a escritora Ariadne Oliver).

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A título de curiosidade: sabiam que Agatha Christie visitou Portugal nos anos 60 do século passado? E que para conseguir falar com ela, o “Inspector Varatojo” (que não era da polícia mas sim um advogado apaixonado pela criminologia e escritor de romances policiais, e que teve um programa na televisão) e a sua mulher lhe ofereceram um cesto com maçãs, por saberem que ela idealizou alguns dos seus enredos policiais enquanto tomava um banho de imersão e comia maçãs?

 

 

(Fonte principal: http://www.agathachristie.com/)

 

Dos livros e seus filmes

por Ana CB, em 20.06.15

Não sei se já o disse aqui, mas é raro eu gostar mais de um filme do que do livro que o inspirou. Assim de repente, lembro-me apenas de um: “O Paciente Inglês”, realizado por Anthony Minghella com base no livro de Michael Ondaatje, embora talvez exista mais um ou outro caso. Há alguns filmes de que gostei tanto como dos livros – a saga Harry Potter, por exemplo, ou o excelente filme “Quarto com Vista Sobre a Cidade”, de James Ivory, com as maravilhosas actrizes Maggie Smith e Helena Bonham-Carter (aqui no início da sua carreira), e baseado no também excelente romance de E. M. Forster -, mas de um modo geral acho sempre que os filmes ficam um pouco (quando não muito) aquém dos livros. E é por esta razão que prefiro ver primeiro o filme e só depois ler o livro, pois quando sucede o contrário acabo quase sempre por sair desiludida do cinema (ou do sofá, dependendo das circunstâncias…).

E como um dos meus géneros preferidos de livro é o policial, é óbvio que li religiosamente e de um fôlego a trilogia Millennium do Stieg Larsson, aproveitando uma altura de férias há coisa de uns quatro anos. Li e gostei imenso, e sobre estes três livros acho que não vale a pena dizer mais nada porque já tudo foi dito e escrito. Quem já os leu também sabe do que falo, e a quem não leu aconselho que não espere mais tempo e vá a correr comprá-los, porque foram (são) uma pedrada no charco da literatura policial.

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Como é também óbvio, quando em 2012 estreou em Portugal o filme de David Fincher que recria a história do primeiro livro, “Os Homens que Odeiam as Mulheres”, fiz questão de ir vê-lo ao cinema. Não sendo tão empolgante quanto o livro, ainda assim o filme agradou-me mais do que estava à espera, apesar de ter do princípio ao fim os clichés normais dos filmes americanos que vemos constantemente. Mas conta com boas interpretações de grandes actores, está bem realizado, e não se afasta demasiado do livro, apesar de lhe faltar alguma profundidade. No todo, achei-o uma adaptação razoável.

Antes, em 2009, já tinha sido exibido nas salas de cinema portuguesas o filme sueco com base no mesmo livro, em relação ao qual os críticos se dividiram e que um colega meu me desaconselhou, por não ter gostado dele. Por essa razão ou por qualquer outra, a verdade é que na altura não fui vê-lo.

Sucede no entanto que há uns dias atrás passaram, no Fox Movies da televisão por cabo e todos de seguida, os três filmes suecos feitos precisamente a partir das histórias da trilogia. Claro que ao tê-los assim à disposição todos juntos, a minha curiosidade falou mais alto e não resisti à tentação.

E não é que tive uma agradável surpresa? Quando comecei a ver o primeiro ainda estava meio desconfiada, à espera de me aborrecer e desistir de ver até ao fim, mas a verdade é que não podia estar mais enganada: gostei imenso do filme, tanto que acabei por ver também os outros dois, e tudo praticamente de uma assentada.

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Para falar com franqueza, gostei bastante mais do filme sueco do que do seu congénere americano. A diferença está não tanto na adaptação do argumento, já que ambos são suficientemente fiéis ao original (o sueco talvez um pouco mais do que o americano), mas sobretudo na atmosfera que nos é transmitida. É um filme mais “real”, em todos os sentidos. As personagens são credíveis, são homens e mulheres de verdade, com rugas, barriga e poros dilatados. Os diálogos poderiam ser verdadeiros, ditos por alguém como eu ou vocês, os cenários estão cheios de pormenores comuns a qualquer ambiente onde vivem pessoas vulgares, e as cenas de violência ou de acção têm a dose certa de verosimilhança, sem caírem no exagero. A personagem feminina principal, Lisbeth Salander, está brilhantemente interpretada por Noomi Rapace, que consegue transmitir-nos ao mesmo tempo a ideia de força e vulnerabilidade que Stieg Larsson atribuiu à heroína dos seus livros. Quanto a Michael Nyqvist, que interpreta o papel do jornalista Mikael Blomkvist (uma espécie de alter ego do próprio Stieg Larsson), tem uma actuação quanto a mim talvez demasiado contida – mas a verdade é que os suecos são, pelo menos em muitos dos seus filmes, de uma maneira geral algo inexpressivos.

Os dois filmes da sequela, “A Rapariga que Sonhava com uma Lata de Gasolina e um Fósforo” e “A Rainha no Palácio das Correntes de Ar”, têm realizador e características ligeiramente diferentes do primeiro. Os três filmes foram lançados no mesmo ano, e por isso existe alguma unidade entre eles, mas no segundo e terceiro nota-se uma acentuada vocação para serem telefilmes, enquanto o primeiro está nitidamente feito para exibição numa sala de cinema. Mesmo assim, não desapontam. Tirando um ou outro pormenor mais teatral e a óbvia dificuldade de condensar em cerca de duas horas e meia livros de 600 ou 700 páginas, são também bastante fiéis à história original e o nível das interpretações mantém-se.

Dito isto, não vou cair no exagero de dizer que os filmes são tão bons quanto os livros. Mas andam lá perto. Talvez seja porque já li os livros há uns anos e obviamente não me recordo de todos os pormenores, ou talvez porque tal como a sua literatura, o cinema nórdico deu o salto para o século XXI, actualizando-se sem perder as suas características de qualidade (veja-se o exemplo da série dinamarquesa de sucesso “The Killing”, e não só). O que sei é que me surpreenderam pela positiva, e dei por bem empregue o meu tempo.

Por isso, se puderem, vão procurar os filmes no guia da tv por cabo de sábado passado (ou no videoclube) e preparem-se para várias horas de bom cinema. Tenho a certeza de que não vão arrepender-se; afinal, um bom livro é meio caminho andado para um bom filme.

Depois não digam que não vos avisei.

 

(se quiserem saber mais sobre os filmes, é só seguirem este link: http://foxmovies.canais-fox.pt/artigos/especial-trilogia-millennium-1)

Os meus favoritos

por Ana CB, em 23.09.14

 

Esta moda dos desafios irrita-me um bocado, e até agora não tinha alinhado em nenhum. Mas há dias uma amiga muito querida desafiou-me a fazer uma lista de livros de que gosto, e a este eu não resisti – pela amiga em questão, e por ser sobre livros.

A tarefa não foi nada fácil e a lista inicial estava tão extensa que tive de cortar bastantes, e mesmo assim ainda é bem grandinha. Por essa mesma razão, e para a lista também não ser demasiado óbvia e entediante, optei por deixar de fora muitos clássicos e alguns best-sellers muito “badalados” e já conhecidos de quase toda a gente, e escolhi alguns que serão certamente desconhecidos para a maioria das pessoas.

Tentei também incluir livros de vários géneros diferentes, a bem da diversidade.

É, está claro, uma lista muito pessoal e sem quaisquer pretensões intelectuais ou comerciais.

 

“O Tao do Pooh” – Benjamin Hoff

“Mas é Bonito” – Geoff Dyer

“Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada” – Pablo Neruda

 

“Histórias Extraordinárias” – Edgar Allan Poe

“Guerra e Paz” – Leon Tolstoi

“O Retrato de Dorian Gray” – Oscar Wilde

 

“As Intermitências da Morte” – José Saramago

“A Cidade e as Serras” – Eça de Queiroz

“Retalhos da Vida de um Médico” – Fernando Namora

“O Império dos Pardais” – João Paulo Oliveira e Costa

 

“Wolf Hall” e “O Livro Negro” – Hilary Mantel

“Um Quarto com Vista” – Edward Morgan Forster

“O Físico” – Noah Gordon

“O Perfume” – Patrick Süskind”

“O Boticário do Rei” – Jean-Christophe Rufin

Trilogia do Cairo (“Entre os Dois Palácios”, “O Palácio do Desejo”, “O Açucareiro”) – Naguib Mahfouz

“A Alameda do Rei” – Françoise Chandernagor

“A Estratégia do Bobo” – Serge Lentz

“Da Parte da Princesa Morta” – Kenizé Mourad

“O Tempo Entre Costuras” – María Dueñas

 

“Americanah” – Chimamanda Ngozi Adichie

“Cem Anos de Solidão” – Gabriel Garcia Márquez

“O Quinto Filho” – Doris Lessing

“Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal” – John Berendt

 

“A Dália Negra” – James Ellroy

Trilogia Millennium (“Os Homens que Odeiam as Mulheres”, “A Rapariga que Sonhava com uma Lata de Gasolina e um Fósforo”, “A Rainha no Palácio das Correntes de Ar”) – Stieg Larsson

“O Assassinato de Roger Ackroyd” – Agatha Christie

 

“1984” – George Orwell

“Admirável Mundo Novo” – Aldous Huxley

“Viagem Fantástica ao Cérebro” – Isaac Asimov

“O Hobbit” – JRR Tolkien

 

Um policial clássico escrito a várias mãos

por Ana CB, em 24.08.14

 

“QUEM MATOU O ALMIRANTE?”

 

The Detection Club 

 

 

 

Título: Quem Matou o Almirante?

Título original: The Floating Admiral

Autor: The Detection Club

Ano de lançamento: 1931

 

Editora: Edições Asa II

Publicação: 1ª edição – Junho 2014

Número de páginas: 344

Tradução: Mário Dias Correia

 

 

Confesso que já andava com algumas saudades de ler um policial clássico, daqueles em que o objectivo do enredo é simplesmente descobrir quem cometeu o crime, como e porquê. E quando vi que um dos autores deste livro era Agatha Christie, ainda fiquei mais curiosa.

 

Sendo um clássico no conteúdo, na forma como foi escrito este policial já não o é tanto assim. De facto, “Quem Matou o Almirante?” tem nada mais nada menos do que treze autores (catorze, se considerarmos que um deles é o casal G.D.H. Cole e Margaret Cole), cada um encarregue de escrever um capítulo, e todos eles membros do The Detection Club. Este Clube, de origem algo misteriosa mas que sobrevive até hoje, é constituído por autores de ficção policial do Reino Unido (actualmente tem cerca de sessenta membros), cuja admissão está dependente de cumprirem algumas condições e prestarem um juramento de fidelidade ao Clube, às regras de ficção policial estabelecidas pelo mesmo, e aos leitores. Embora, nas palavras de Dorothy L. Sayers, uma das fundadoras, ele exista “sobretudo com o propósito de jantarmos juntos a intervalos regulares e falarmos de trabalho até às tantas”.

 

O enredo é basicamente simples, como é habitual nestas novelas: numa típica e sonolenta vilazinha inglesa é encontrado um cadáver num barco à deriva no rio. O inspector Rudge, um também típico polícia inglês de província, vê-se a braços com a complicada tarefa de tentar descobrir quem foi o autor do crime, para o que terá de desenredar uma intrincada meada que envolve suspeitos vários, motivos obscuros, personagens misteriosas, amarras cortadas, horários de marés, peças de vestuário diversas, um jornal e uma chave, e um sem número de outros pormenores que vão adensando a trama à medida que a história progride.

 

Mas se a história de base promete, tal como a maioria dos policiais clássicos, várias horas de leitura empolgante até ao último capítulo, onde a chave para a solução do crime é finalmente desvendada, na prática o resultado fica bastante aquém do esperado. Depois de um prólogo enigmático e três ou quatro capítulos em que o trabalho detectivesco segue um fio coerente, liderado por um inspector classicamente caracterizado, e cada personagem que surge contribui com novos elementos que adensam o mistério, o enredo começa a descambar à medida que cada autor parece fazer questão, no capítulo com que contribui para o livro, em “baralhar” o cenário a seu bel-prazer e de forma por vezes quase absurda. Há reviravoltas constantes, com factos novos e por vezes pouco credíveis a serem introduzidos em qualquer momento, pistas que parecem prometedoras e importantes num capítulo são descartadas num ápice ou simplesmente esquecidas no capítulo seguinte, e a própria caracterização dos intervenientes é quase constantemente posta em causa não só pelos novos factos que vão surgindo, como principalmente pela atracção que cada autor parece ter por imprimir o seu cunho muito pessoal aos “bonecos” criados para a história, dando prioridade ao seu próprio estilo em detrimento da homogeneidade do livro. Esta “oscilação de humores” é particularmente visível no caso do inspector Rudge, que é afinal de contas a personagem principal do enredo, e cuja personalidade vai apresentando tantas variações de capítulo para capítulo que chega a ficar por vezes irreconhecível.

 

No capítulo VIII a história já está tão baralhada que Ronald Knox decide ocupar as suas trinta e oito páginas com uma longa e fastidiosa lista de “trinta e nove artigos de dúvida” que se acumularam até ali, o que só piora a situação. São muitas páginas aborrecidas e praticamente desprovidas de interesse para o leitor e que cortam quase completamente a relativa curiosidade que o enredo despertava até essa altura. Poderiam ser eventualmente úteis para os seus colegas escritores que se lhe seguiram, mas na verdade não foi esse o resultado, porque daí para a frente a trama parece tornar-se ainda mais intrincada. Por esta altura, o livro parece um comboio prestes a descarrilar.

 

O último capítulo, por força das circunstâncias, acaba por ser quase um livro dentro do livro. A meada está tão enredada que não é possível desenleá-la em poucas palavras. Anthony Berkeley precisa de quase setenta páginas para o fazer, e mesmo assim o resultado é pouco mais do que sofrível – mas diga-se em sua defesa que não é possível remendar sem deixar marcas um tecido que tem tantos buracos.

 

Cada cabeça, sua sentença, e este livro é a prova disso. Apesar de todos os autores, com excepção dos que escreveram os dois primeiros capítulos, terem sido obrigados a entregar com o seu manuscrito a solução que proporiam para finalizar a história, obviamente tendo em conta o ponto em que ela se encontrava quando saía das suas mãos, este pormenor não parece ter contribuído para que o resultado geral do livro fosse melhor. Todas estas soluções são-nos também reveladas em Apêndice e embora umas sejam mais engenhosas ou verosímeis do que outras, a verdade é que não ajudam a aligeirar a imagem global de que este livro poderá ter sido um cativante exercício de escrita para os seus autores mas é incapaz de despertar, mesmo que remotamente, o mesmo interesse em quem o lê.

 

 

Estou a ler agora: O Fogo, de Katherine Neville