A guerra esquecida
MEIO SOL AMARELO
Chimamanda Ngozi Adichie
Título: Meio sol amarelo
Título original: Half of a yellow sun
Autor: Chimamanda Ngozi Adichie
Ano de lançamento: 2006
Editora: Asa
Publicação: 1ª edição – Julho 2009
Número de páginas: 544
Tradução: Tânia Ganho
Chimamanda Ngozi Adichie é uma das minhas escritoras preferidas. O primeiro livro dela que li foi “Americanah”, comprado um pouco por acaso sem ter qualquer referência de alguém que já tivesse lido alguma sua obra, e que foi para mim uma muito grata surpresa. Aliás, “Americanah” faz parte da lista dos meus livros favoritos (de que já falei aqui), e penso que isso já diz tudo, ou quase.
A impressão com que fiquei de Chimamanda foi tão mas tão favorável que quando surgiu a oportunidade não hesitei em comprar este “Meio sol amarelo”, que foi publicado antes de “Americanah” e vencedor de um Orange Prize, entre outras distinções. Embora, devo confessar, quando comecei a lê-lo tenha tido um certo receio de que ficasse aquém do outro e me desiludisse um bocado.
Pois deixem que vos diga que os meus receios foram completamente infundados. “Meio sol amarelo” conseguiu agarrar-me tanto ou mais do que “Americanah”, apesar de o seu tema de fundo ser bastante diferente.
O cenário em que se desenrola o livro é a guerra do Biafra. “Guerra do quê?”, perguntarão vocês. Mesmo em Portugal – que, curiosamente, foi um dos poucos países que apoiou a independência do Biafra – não haverá muita gente que se lembre de vez em quando daquela que foi a primeira guerra civil exclusivamente entre africanos no séc. XX, e também a primeira a ter alargada cobertura dos meios de comunicação à escala global. Um conflito provocado simultaneamente por questões religiosas, étnicas e económicas, que durou quase três anos e terminou com a reintegração do Biafra na Nigéria e um saldo de três milhões de mortos (dos oito milhões de almas que habitavam a região), na sua maioria de fome e doenças provocadas pelo bloqueio organizado pela Nigéria com o apoio de países de peso, como a Grã-Bretanha ou a União Soviética, e que interditou completamente a entrada na região de alimentos ou qualquer outro tipo de ajuda (incluindo a humanitária). Uma verdadeira catástrofe, que hoje em dia está praticamente esquecida – sem dúvida que em parte por causa dos inúmeros outros conflitos bélicos que têm ocorrido uns atrás dos outros desde essa altura, numa espiral de loucura que parece não ter qualquer fim à vista.
(Para quem quiser conhecer mais alguns pormenores da guerra do Biafra, sugiro que leia este pequeno mas bastante elucidativo artigo do DN.)
Retrato cru e desassombrado deste trágico pedaço da história de um povo, “Meio sol amarelo” entrelaça acontecimentos verídicos com as vidas ficcionadas das personagens criadas por Chimamanda para através delas nos fazer chegar a sua mensagem, a sua visão dos factos. Que é também, e outra coisa não seria de esperar, uma visão sobretudo muito feminina dos acontecimentos e mais ainda da sociedade daquele que é o país de nascimento da escritora. Ugwu, o adolescente a quem a guerra rouba a inocência e que mais tarde irá encontrar a sua voz através da escrita; o revolucionário Odenigbo e a corajosa e apaixonada Olanna; a surpreendente Kainene e o “estrangeiro” Richard; são eles os actores principais deste livro que, assim como quem não quer a coisa, nos dá um murro no estômago. E quem nos mostra como as maiores vítimas de qualquer conflito armado são sempre as pessoas como nós, aquelas que de um dia para o outro vêem a sua vida virada do avesso sem em nada para isso terem contribuído; mas que mesmo assim se esforçam para não perderem a sua humanidade e continuarem a sentir.
A escrita de Chimamanda tem uma qualidade descritiva fora de série. Ela consegue “pintar” cada cenário, cada reacção, cada acontecimento com um detalhe e uma nitidez surpreendentes, e no entanto nem damos por isso. Não se torna maçuda nem palavrosa e constrói diálogos naturais, que mistura agilmente com a narrativa. No livro não há momentos aborrecidos, apesar de algumas partes serem pesadas de digerir.
Mas não pensem que a mensagem que é passada neste livro pela autora é de fatalidade ou rancor. Muito pelo contrário. É de perdão que aqui se fala, de redenção, de renascimento. De como é possível sobreviver a um holocausto e voltar a viver e a ter esperança, mesmo quando o desenlace de uma luta não é aquele que quereríamos, mesmo quando tantas vidas perdidas e tanto infortúnio parecem afinal ter sido em vão – meros danos colaterais numa guerra sem sentido. Como o são, aliás, todas as guerras.