O mundo num bairro de Madrid
“COSMOFOBIA”
Lucía Etxebarría
Título: Cosmofobia
Título original: Cosmofobia
Autor: Lucía Etxebarría
Ano de lançamento: 2007
Editora: Casa das Letras – Oficina do Livro
Publicação: Julho 2008
Número de páginas: 319
Tradução: Artur Lopes Cardoso
Revisão: Ayala Monteiro
Há já muito tempo que queria ler qualquer coisa da Lucía Etxebarría. Já tinha lido críticas aos livros dela, entrevistas com ela, mas por qualquer razão ainda nenhum livro. Então apareceu-me este, a um preço baixinho numa promoção (porque agora é raro comprar livros que não estejam em promoção, há sempre tantos e de todos os géneros), e nem hesitei.
“Cosmofobia” é assim como que uma espécie de puzzle. Cada capítulo é a história de uma pessoa diferente, contada na primeira ou na terceira pessoa, às vezes em forma de narrativa e outras de conversa com a (suposta) autora do livro. O que todas estas pessoas têm em comum é o facto de viverem ou se movimentarem no bairro madrileno de Lavapiés, um bairro multicultural que apenas uma rua separa do bairro de Las Letras, zona chique da cidade. E é precisamente isto que nos mostra o livro, este contraste, esta multiculturalidade de um grupo de pessoas ligadas umas às outras pelas circunstâncias da vida, que se tocam ao de leve mas continuam agarradas aos seus hábitos sociais e culturais e nunca se misturam realmente. Cada história individual remete-nos para uma ou mais das outras histórias, por vezes mostrando-nos uma versão quase antagónica do que nos foi contado antes, mas sempre acrescentando mais qualquer coisa que nos ajuda a compreender o que não foi desvendado.
São histórias entrecruzadas mas, tal como num puzzle, as peças aparecem-nos todas soltas e misturadas. A ordem pela qual estas histórias são narradas não é temporal, nem absolutamente linear, nem parece ter por vezes qualquer lógica, o que nos obriga a um trabalho de observação e de memória para relacionarmos cada elemento, cada episódio que lemos, com o que já nos foi contado anteriormente. À medida que progredimos no livro e vamos encaixando umas peças nas outras, assim se vai formando uma paisagem, um quadro que se nos vai revelando a pouco e pouco, até ficar completo quando colocamos a última peça, quando lemos a última história.
As personagens são interessantes, muito variadas e multifacetadas. Como a própria Lucía Etxebarría esclarece no início do livro, algumas são reais e outras inspiradas em informação que a autora obteve de maneiras diversas, mas o todo é pura ficção. No entanto, a forma como Lucía as expõe e narra as suas vidas é tão viva, tão real e verosímil que por vezes temos a sensação de que aquelas pessoas existem mesmo, ou poderiam existir tal e qual são descritas.
Lucía Etxebarría escreve com muita informalidade mas com grande riqueza verbal. Praticamente sem darmos por isso, constrói quadros pormenorizados sem precisar de se estender em descrições entediantes, e disseca a personalidade de cada uma das suas personagens camada por camada, mostrando às claras alguns aspectos e apenas sugerindo outros, encarregando-nos de concluir o raciocínio. Também por isso, o livro não cai nunca na monotonia, e foi até com alguma pena que cheguei ao fim. Apetecia-me saber mais, conhecer o desenrolar futuro daquelas histórias, algumas delas tão pouco edificantes e outras tão comoventes, mas todas tão humanas. É caso para dizer que cada uma delas daria para escrever um livro inteiro – ou pelo menos um extenso conto.
Nota-se que houve bastante cuidado na edição do livro, na sua tradução e na revisão. Sendo uma tradução do espanhol, a dificuldade maior seria não cair na tentação de traduzir demasiado à letra, do que resultaria um texto demasiado “espanholado”, mas sem perder a informalidade e a qualidade inata da língua e da escrita originais. Apesar de uma ou outra incorrecção mais evidente e até intolerável (“groopie” em vez de “groupie”, por exemplo) e de meia dúzia de gralhas (eu sei que o trabalho de revisor não é fácil, mas mesmo assim…), a qualidade geral é boa e o livro lê-se sem grandes sobressaltos.
Como já devem ter percebido, gostei de “Cosmofobia” o suficiente para querer ler mais obras de Lucía Etxebarría, que já conta com mais de 25 livros publicados, alguns deles ensaios (no domínio da psicossociologia, sobre comportamentos e relações interpessoais). Em http://www.luciaetxebarria.es/index.php divulga as suas obras e tem publicados alguns textos mais recentes. É uma escritora com uma voz moderna e obviamente feminina, com preocupações sociais. Talvez alguns dos temas que aborda sejam algo recorrentes, mas a verdade é que nunca é demais falar sobre aqueles grandes paradigmas que fazem de nós seres verdadeiramente humanos num mundo (ou numa sociedade, melhor dizendo) que insiste constantemente em nos considerar apenas números.