Terror, horror, fantástico e coisas assim
Desde que me lembro, sempre tive medo do escuro. Medo mesmo, a ponto de durante algum tempo precisar de dormir com uma lamparina acesa (sim, naquela altura ainda se usavam lamparinas) à entrada do quarto. A minha nictofobia durou muitos anos, e já era bem adulta quando finalmente passou. Escusado será dizer que fui também uma miúda facilmente impressionável, por isso nunca convivi muito bem com histórias que envolvessem monstros, seres sobrenaturais e afins. Estranhamente, o sangue nunca me incomodou – podia ver ou ler sobre as maiores sangueiras do mundo, que isso não me afectava. Mas bastava lançarem um espírito demoníaco ou um alien predador na história para me verem toda encolhidinha de medo.
Tinha aí uns quinze anos quando li “O Exorcista” de William Peter Blatty, que tinha na altura dado origem ao filme. Acabei de o ler já noite dentro, e estava tão aterrorizada que me levantei e fui acendendo as luzes todas da casa até chegar à divisão onde a minha irmã dormia para a acordar sem cerimónias e lhe pedir para ficar a falar comigo durante um bocado.
A experiência foi suficientemente traumatizante para me manter arredada de livros do género durante muitos anos.
Mas o mesmo não posso dizer em relação aos filmes, pois de vez em quando lá caía na asneira de ir ver um filme de terror, fosse porque desconhecia que era desse género, fosse porque a curiosidade falava mais alto do que a minha cautela, fosse porque alguém acabava por me convencer a ir com o argumento de que estaria a perder “um filme muito bom”. E se “O Tubarão”, por exemplo, não me afectou por aí além, o mesmo não posso dizer do “Drácula” na sua versão de 1979, de “A Semente do Diabo” (mais conhecido pelo título original, “Rosemary’s Baby”), ou de “Alien, o 8º Passageiro” (o primeiro filme da saga), que me deram pesadelos durante inúmeras noites – isto só para citar alguns.
A verdade é que eu cresci numa época em que a ideia do mundo era transmitida às crianças como um lugar cheio de perigos desconhecidos, fossem eles de origem humana ou sobrenatural. Até as histórias supostamente infantis mais populares pareciam ter como missão aterrorizar mais do que distrair: um lobo que come pessoas, uma bruxa que oferece uma maçã envenenada, uma casinha de chocolate onde vive uma bruxa que come criancinhas, um país onde a rainha ordena indiscriminadamente que se cortem cabeças… Convenhamos que nada disto era propriamente adequado a tranquilizar espíritos timoratos.
Era uma altura em que os dinossauros eram monstros horrorosos e destruidores como a “Godzilla”, os vampiros eram seres demoníacos sem um pingo de bondade no corpo, e os zombies apareciam não se sabe bem porquê e eram praticamente invencíveis. Hoje mudou tudo: os dinossauros viraram bichos fofinhos e maioritariamente inofensivos, os vampiros e lobisomens são personagens românticos e incompreendidos, e os mortos-vivos são as pobres vítimas de uma qualquer experiência que correu mal e há até quem se dedique a tentar encontrar uma cura para a sua doença. Talvez por oposição ao mundo, que parece estar cada vez mais perigoso e louco, a imagem dos misteriosos representantes do Mal de outros tempos tem vindo a ser progressivamente “adocicada”.
Apesar disso – ou, quem sabe, por causa disso - o género está bem e recomenda-se, tanto na literatura como no cinema.
E a propósito de género, de que é que falamos quando falamos em ficção de terror, horror, fantástico e etc.?
A linha que divide o terror do horror é tão fina que muitas vezes nem conseguimos separar um do outro. Mas existe alguma diferença. O terror é geralmente descrito como sendo um sentimento de pavor, de medo antecipado, quando achamos que algo de muito mau vai acontecer. Já o horror é o que sentimos quando vemos ou ouvimos algo que nos causa repulsa, ou passamos por uma experiência extremamente desagradável. O terror está relacionado com os nossos medos e ansiedades, com a nossa imaginação, e anda frequentemente de mãos dadas com o suspense, enquanto o horror é uma reacção involuntária na sequência de um acontecimento que nos choca ou amedronta.
A ficção fantástica é toda aquela que aborda factos que fogem à nossa lógica e à nossa realidade. Pode contar-nos histórias de fantasia, sobrenaturais ou ir pelos caminhos da ficção científica. Pode manter-nos em suspense, criar atmosferas de terror e causar-nos horror. Pode também encantar-nos, abrir as comportas da nossa imaginação e levar-nos a mundos desconhecidos para experimentarmos emoções contraditórias. E está de muito boa saúde nos dias que correm.
Na verdade, cada vez há mais público fiel ao género. E mais escritores para o alimentarem, que lançam novidades a um ritmo alucinante e para todos os gostos. Na onda deste filão recém-descoberto, os clássicos são revisitados e reinventados, e alguns viram autores de culto. Criam-se sequelas e prequelas, há adaptações de livros para a tv e o cinema, e os argumentos de filmes e séries transformam-se em livros.
Apesar de ter ultrapassado a minha nictofobia de forma natural e sem dar conta, a minha relação com a ficção de terror continua atribulada. Por vezes adoro, por vezes deixa-me inquieta e detesto. Mas só mesmo a de terror, que de resto sou bastante fã da ficção fantástica, e isto já desde miúda – muito provavelmente desde que a minha mãe me deu “Os mais belos contos de fadas” (de que já falei aqui) e mais tarde alguns livros de Júlio Verne, que foi sem dúvida o precursor da ficção científica moderna. Em adolescente li os clássicos “A guerra dos mundos” de H.G.Wells, “1984” de George Orwell, “Admirável mundo novo” de Aldous Huxley, e “Tales of Mistery & Imagination”, uma compilação de alguns dos melhores contos de Edgar Allan Poe, que ainda hoje continuam a ser dos meus livros preferidos. E “Fahrenheit 451” e outros de Ray Bradbury, além das obrigatórias obras de culto “Drácula” de Bram Stoker e “Frankenstein” de Mary Shelley. Mais tarde “descobri” Tolkien e o seu “Hobbit”, Isaac Asimov e a sua “Fantástica viagem ao cérebro”, e a saga “Dune” de Frank Herbert.
Li “Contacto”, de Carl Sagan, assim que saiu, vários de Michael Crichton (o autor de “Parque Jurássico” e “A Esfera”) e “Um estanho numa terra estranha” do polémico Robert Heinlein. Depois viciei-me em Stephen King (também já falei sobre ele neste post) e li também George R.R.Martin, o autor das “Crónicas de gelo e fogo”, que deram origem à série “A Guerra dos Tronos”. E sabiam que até Isabel Allende já fez “uma perninha” no campo do fantástico? Não falo de “A casa dos espíritos”, que se enquadra na corrente do realismo mágico, mas sim de uma trilogia que escreveu entre 2002 e 2004 e dá pelo nome genérico de “As aventuras da Águia e do Jaguar” e cujos protagonistas são dois adolescentes e um macaco que se vêem enredados em estranhas aventuras em vários pontos do globo – histórias onde as espiritualidade e o sobrenatural se entrelaçam com uma nítida preocupação ecológica e antropológica.
Podia ainda falar de Anne Rice, Clive Barker, Justin Cronin ou Gillian Flynn, e de muitos outros, ou das famosíssimas J.K.Rowling e Stephanie Meyers, mas então é que este post não terminava nunca…
É como eu disse acima: a ficção fantástica, seja de terror ou outra, está de boa saúde e a florescer a olhos vistos. Eu gosto. E vocês?