Agatha Christie é a romancista mais lida desde sempre, e estima-se que já tenham sido vendidos mais de 4 mil milhões de exemplares dos seus livros em todo o mundo. Famosa sobretudo pelos seus romances e contos policiais, deu vida a duas figuras únicas no género e tão famosas quanto a sua criadora: Hercule Poirot e Miss Marple. Contudo, nos 66 romances policiais 150 contos e 19 peças de teatro que escreveu, Agatha Christie criou também outras figuras igualmente deliciosas e memoráveis, embora muito menos conhecidas; e é delas que hoje quero falar.
Descobri Agatha Christie no início da adolescência, quando lia tudo o que aparecesse lá por casa e tivesse folhas escritas e uma capa, mesmo que não fosse propriamente para a minha idade. Lembro-me das capas de dois livros, uma com muito azul e a outra para mim algo assustadora, mais ainda porque pertenciam à colecção Vampiro, nome que na minha imaginação eu associava a histórias de terror – porque naquela altura os vampiros ainda não eram bonzinhos nem estavam na moda, e eu era uma miúda facilmente impressionável.
Estes antiquíssimos exemplares ainda andam lá pelas estantes da casa dos meus pais, que eles (a quem sairia eu com este hábito de não me desfazer destas coisas?) também têm a mania de não deitar livros fora.
Eis a razão por que “O Mistério do Comboio Azul” foi o primeiro livro da Agatha Christie que li; e gostei tanto que logo a seguir ultrapassei os meus preconceitos em relação à capa “angustiante” de “O Natal de Poirot” e não descansei enquanto não o li também. Anos mais tarde, a Livros do Brasil iniciou a publicação da obra completa da autora na sua colecção Vampiro Gigante, com dois títulos por livro, e claro que (como seria de prever) sou a feliz possuidora de todos estes livros, do n.º 1 ao n.º 40.
E foi precisamente no volume 1 da colecção que fiquei a conhecer o casal de “detectives/espiões/aventureiros” mais engraçado da história da literatura policial:
Tommy & Tuppence
Em “O Adversário Secreto”, publicado em 1922, os dois velhos amigos Prudence (“Tuppence”) Crowley e Thomas (“Tommy”) Beresford encontram-se por acaso numa estação de metro em Londres, em pleno rescaldo da Primeira Guerra Mundial. Ambos desempregados, decidem formar uma empresa pouco convencional especializada em investigações, a que dão o nome de Young Adventurers Ltd. Anunciam-se como “dispostos a fazer qualquer coisa e ir a qualquer lado”. Tuppence é uma força da natureza, e o carácter mais ponderado de Tommy é o seu contraponto perfeito. Muito perigo, muita acção e bastante humor neste primeiro livro.
Ao todo, este intrépido casal é o protagonista de cinco livros, escritos com um intervalo de vários anos entre cada um:
1922 - O Adversário Secreto (The Secret Adversary)
1929 – O Homem que Era o N.º 16 (Partners in Crime, dividido em várias histórias independentes)
1941 – Tempo de Espionagem (N or M?)
1968 – Caminho para a Morte (By the Pricking of My Thumbs)
1973 – Morte pela Porta das Traseiras (Postern of Fate)
Os livros com as “aventuras” de Tommy & Tuppence têm algumas particularidades Interessantes, a primeira das quais o facto de as histórias se passarem em tempo real, isto é, as personagens envelhecem ao longo dos anos. No primeiro livro são dois jovens, no último um casal já idoso que decide gozar a reforma numa nova cidade.
Em “O Homem que Era o N.º 16”, Tommy & Tuppence resolvem o caso de cada uma das histórias à maneira de um detective de romances policiais diferente.
Na totalidade, os cinco livros protagonizados por este casal abrangem todo o período da carreira literária da escritora.
Harley Quin
“O Misterioso Mr. Quin” é uma personagem fugidia e intrigante, que gosta de corações apaixonados e ajuda um “very British” Sr. Satterthwaite a resolver vários mistérios nos contos narrados neste livro (que faz parte do volume 6 da minha colecção). É a única obra da escritora dedicada a uma personagem fictícia, que se inspirou no Arlequim da Commedia dell’Arte para criar aquilo que ela própria definiu, na sua Autobiografia, como “uma figura que apenas entrou numa história – um catalisador, não mais – a sua mera presença afectava os seres humanos”. Um toque de sobrenatural no diversificado mundo misterioso criado por Agatha Christie, ela própria uma mulher com alguns curiosos enigmas na sua vida.
Parker Pyne
O volume 11 da colecção dedicada a Agatha Christie inclui o livro “Parker Pyne Investiga”, que é também um conjunto de várias pequenas histórias, cuja personagem principal se assume como um “especialista do coração”. Funcionário público reformado, Parker Pyne resolve dedicar-se a curar a infelicidade das pessoas usando meios pouco convencionais, frequentemente “fabricando” situações que irão ajudar a resolver os problemas dos que o procuram, por vezes sem eles sequer darem por isso. Os episódios protagonizados por Parker Pyne têm aqui e ali pontos de contacto com outras histórias onde a estrela é o detective Hercule Poirot, seja pela sua localização ou título (como “Morte no Nilo”, por exemplo), seja pelas personagens secundárias que gravitam em torno de um e outro (como Miss Lemon ou a “alter ego” de Agatha Christie, a escritora Ariadne Oliver).
A título de curiosidade: sabiam que Agatha Christie visitou Portugal nos anos 60 do século passado? E que para conseguir falar com ela, o “Inspector Varatojo” (que não era da polícia mas sim um advogado apaixonado pela criminologia e escritor de romances policiais, e que teve um programa na televisão) e a sua mulher lhe ofereceram um cesto com maçãs, por saberem que ela idealizou alguns dos seus enredos policiais enquanto tomava um banho de imersão e comia maçãs?
Confesso que já andava com algumas saudades de ler um policial clássico, daqueles em que o objectivo do enredo é simplesmente descobrir quem cometeu o crime, como e porquê. E quando vi que um dos autores deste livro era Agatha Christie, ainda fiquei mais curiosa.
Sendo um clássico no conteúdo, na forma como foi escrito este policial já não o é tanto assim. De facto, “Quem Matou o Almirante?” tem nada mais nada menos do que treze autores (catorze, se considerarmos que um deles é o casal G.D.H. Cole e Margaret Cole), cada um encarregue de escrever um capítulo, e todos eles membros do The Detection Club. Este Clube, de origem algo misteriosa mas que sobrevive até hoje, é constituído por autores de ficção policial do Reino Unido (actualmente tem cerca de sessenta membros), cuja admissão está dependente de cumprirem algumas condições e prestarem um juramento de fidelidade ao Clube, às regras de ficção policial estabelecidas pelo mesmo, e aos leitores. Embora, nas palavras de Dorothy L. Sayers, uma das fundadoras, ele exista “sobretudo com o propósito de jantarmos juntos a intervalos regulares e falarmos de trabalho até às tantas”.
O enredo é basicamente simples, como é habitual nestas novelas: numa típica e sonolenta vilazinha inglesa é encontrado um cadáver num barco à deriva no rio. O inspector Rudge, um também típico polícia inglês de província, vê-se a braços com a complicada tarefa de tentar descobrir quem foi o autor do crime, para o que terá de desenredar uma intrincada meada que envolve suspeitos vários, motivos obscuros, personagens misteriosas, amarras cortadas, horários de marés, peças de vestuário diversas, um jornal e uma chave, e um sem número de outros pormenores que vão adensando a trama à medida que a história progride.
Mas se a história de base promete, tal como a maioria dos policiais clássicos, várias horas de leitura empolgante até ao último capítulo, onde a chave para a solução do crime é finalmente desvendada, na prática o resultado fica bastante aquém do esperado. Depois de um prólogo enigmático e três ou quatro capítulos em que o trabalho detectivesco segue um fio coerente, liderado por um inspector classicamente caracterizado, e cada personagem que surge contribui com novos elementos que adensam o mistério, o enredo começa a descambar à medida que cada autor parece fazer questão, no capítulo com que contribui para o livro, em “baralhar” o cenário a seu bel-prazer e de forma por vezes quase absurda. Há reviravoltas constantes, com factos novos e por vezes pouco credíveis a serem introduzidos em qualquer momento, pistas que parecem prometedoras e importantes num capítulo são descartadas num ápice ou simplesmente esquecidas no capítulo seguinte, e a própria caracterização dos intervenientes é quase constantemente posta em causa não só pelos novos factos que vão surgindo, como principalmente pela atracção que cada autor parece ter por imprimir o seu cunho muito pessoal aos “bonecos” criados para a história, dando prioridade ao seu próprio estilo em detrimento da homogeneidade do livro. Esta “oscilação de humores” é particularmente visível no caso do inspector Rudge, que é afinal de contas a personagem principal do enredo, e cuja personalidade vai apresentando tantas variações de capítulo para capítulo que chega a ficar por vezes irreconhecível.
No capítulo VIII a história já está tão baralhada que Ronald Knox decide ocupar as suas trinta e oito páginas com uma longa e fastidiosa lista de “trinta e nove artigos de dúvida” que se acumularam até ali, o que só piora a situação. São muitas páginas aborrecidas e praticamente desprovidas de interesse para o leitor e que cortam quase completamente a relativa curiosidade que o enredo despertava até essa altura. Poderiam ser eventualmente úteis para os seus colegas escritores que se lhe seguiram, mas na verdade não foi esse o resultado, porque daí para a frente a trama parece tornar-se ainda mais intrincada. Por esta altura, o livro parece um comboio prestes a descarrilar.
O último capítulo, por força das circunstâncias, acaba por ser quase um livro dentro do livro. A meada está tão enredada que não é possível desenleá-la em poucas palavras. Anthony Berkeley precisa de quase setenta páginas para o fazer, e mesmo assim o resultado é pouco mais do que sofrível – mas diga-se em sua defesa que não é possível remendar sem deixar marcas um tecido que tem tantos buracos.
Cada cabeça, sua sentença, e este livro é a prova disso. Apesar de todos os autores, com excepção dos que escreveram os dois primeiros capítulos, terem sido obrigados a entregar com o seu manuscrito a solução que proporiam para finalizar a história, obviamente tendo em conta o ponto em que ela se encontrava quando saía das suas mãos, este pormenor não parece ter contribuído para que o resultado geral do livro fosse melhor. Todas estas soluções são-nos também reveladas em Apêndice e embora umas sejam mais engenhosas ou verosímeis do que outras, a verdade é que não ajudam a aligeirar a imagem global de que este livro poderá ter sido um cativante exercício de escrita para os seus autores mas é incapaz de despertar, mesmo que remotamente, o mesmo interesse em quem o lê.
A minha prateleira dos livros para ler conta finalmente com mais algumas aquisições recentes, que vou saborear de preferência, e sempre que puder, em tardes quentes (mas onde anda o Verão? ...) deitada na espreguiçadeira da minha varanda.
“Os Cadernos Secretos de Agatha Christie”, de John Curran – porque gosto imenso de policiais e sou uma fã da Agatha Christie desde há muitos anos.
"A Vida Secreta de Stella Bain”, de Anita Shreve – porque gosto de romances históricos e não desgostei de “A Praia do Destino”, que é da mesma autora.
“As Mulheres de Summerset Abbey”, de T. J. Brown – porque foi oferta quando encomendei o livro da Anita Shreve (obrigada, FNAC online!) e porque já li o 2º livro desta trilogia (também oferta) e, apesar de ser leitura levezinha, já agora tenho curiosidade em conhecer o princípio da história.
“Cisnes Selvagens”, de Jung Chang – este vai ser uma re-leitura; adorei o livro quando o li, há já bastantes anos, emprestado por uma amiga; mais recentemente, uma outra amiga com bom gosto ofereceu-mo, e vou voltar a mergulhar nesta história.
Obviamente, tenho mais alguns livros já debaixo de olho… mas tudo tem o seu tempo.