Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Gene de traça

Livros e etc.

Leituras alternativas para as férias

por Ana CB, em 13.07.17

 

Por esta altura não há jornal, revista, livraria ou blogue literário que não publique a sua lista de livros recomendados para ler nas férias. Normalmente são novidades, ou clássicos, ou uma mistura dos dois. Pois eu, apesar de ultimamente andar a dedicar pouco tempo às leituras e a este blogue, não quero deixar passar a oportunidade de sugerir a minha lista – que, como vão perceber, é bastante heterogénea e muito pouco ortodoxa. O meu critério? Fazem todos parte da minha biblioteca, não são livros muito grandes (e portanto são bons para levar na mala de viagem) e, com uma ou outra excepção, as histórias que contam não são demasiado “pesadas” ou difíceis de seguir – porque na minha opinião (e os fundamentalistas que me desculpem), as férias pedem livros que se leiam bem em qualquer lado, que se possam pegar e largar em qualquer altura sem receio de perder o fio à meada, e que sejam mais virados para o bom humor do que para a introspecção. Sem abrir mão da qualidade.

 

Leituras alternativas.jpg

 

 

 

Um romance adorável sobre o amor e a poesia: O Carteiro de Pablo Neruda, de Antonio Skármeta

 

P1680443.JPG

 

Partindo de alguns factos reais da vida (e morte) do famoso poeta chileno Pablo Neruda e de toda a agitação política do Chile nos finais dos anos 60 e início da década de 70, Skármeta constrói um delicioso, vivaz e enternecedor romance sobre um pescador que se torna carteiro, a sua paixão por uma jovem, e a sua relação com Neruda, em quem se apoia para conquistar o objecto do seu desejo – processo no qual vai descobrindo e mostrando o porquê da existência da poesia. Deste livro saiu um filme igualmente bom e inesquecível, baseado no fio condutor da história do livro mas afastando-se um pouco dele, de forma igualmente brilhante, na caracterização das personagens. Ambos, livro e filme, são altamente aconselháveis, e um daqueles poucos casos em que um não é melhor do que o outro.

 

Uma ficção à volta da política e do jornalismo: House of Cards, de Michael Dobbs

 

P1680431.JPG

 

O título não será certamente estranho a quem for fã da série americana e de Kevin Spacey, um dos patifes mais fascinantes até agora encarnados por este enorme actor – que é excelente quando faz de “bom”, mas verdadeiramente excepcional quando representa o “mau da fita”. Mas adiante. O que poderá ser surpresa é o facto de a série se basear muito proximamente num livro escrito por um jornalista político… britânico. Verdade, verdadinha: House of Cards foi o primeiro romance político de Michael Dobbs (que foi mais tarde conselheiro de três primeiros-ministros do Reino Unido), foi escrito em 1989 e passa-se nos meandros das Casas do Parlamento. Aliás, para além dos jogos maquiavélicos do tortuoso protagonista da história, Francis Urquhart, um dos motivos maiores de interesse deste livro é mesmo a descrição – e dissecação – do sistema parlamentar britânico, com os seus rituais, preceitos e tiques. Um livro bem construído, com muito ritmo, e simultaneamente muito revelador.

(Em jeito de aparte: é brilhante a forma como a realidade britânica foi adaptada ao sistema americano na série televisiva; mais um caso em que a literatura e a cinematografia se equiparam e produzem ambas resultados notáveis.)

 

Um policial muito inglês: Um Vinho Atordoante, de Kate Charles

 

P1680449.JPG

 

A linhagem de escritoras inglesas de romances policiais é longa e de enorme qualidade, e Kate Charles poderia fazer parte dela… não fosse o facto de ter nascido nos Estados Unidos. No entanto, os seus livros policiais têm como subtítulo “Um mistério clerical”, são passados em Inglaterra e seguem a linha tradicional das histórias policiais inglesas: ambientes relativamente fechados, conservadores, frequentemente rurais, com um naipe de actores algo excêntricos e protagonistas muito perspicazes. Um vinho atordoante é o primeiro de uma série de cinco volumes que tomou o nome genérico de Livro dos Salmos: cinco histórias passadas à volta de outras tantas igrejas e quem a elas está ligado, com mortes misteriosas, os suspeitos do costume, voltas e reviravoltas, e um casal de advogados que acaba por solucionar o caso. Very British…

Como e porque é que uma americana consegue escrever policiais tão “britânicos”? Simples: casou com um inglês e vive no Reino Unido há várias décadas. Mistério explicado :)

 

Uma ficção científica bem construída: Viagem Fantástica ao Cérebro, de Isaac Asimov

 

P1680445.JPG

 

Antes, muito antes, dos delírios mais fantasiosos do que científicos dos escritores de ficção científica modernos, este género literário já tinha nas suas fileiras grandes nomes que atraíam leitores fiéis. Isaac Asimov, um americano nascido na Rússia, é um desses escritores. Professor universitário de bioquímica, visionário que previu com grande antecedência muitos dos desenvolvimentos tecnológicos de que hoje usufruímos, nas suas quase 500 obras escritas contam-se muitos dos clássicos da FC – como é por exemplo o caso de Eu, Robô, que foi há alguns anos adaptado ao cinema. Este Viagem Fantástica ao Cérebro é um prodígio de possibilidades, uma história irrepreensivelmente bem contada e quase verosímil do ponto de vista teórico, cheia de acção e algum suspense, e um grande entretenimento. O tema da miniaturização e as viagens dentro do corpo humano tornaram-se entretanto algo recorrentes, sobretudo no cinema, mas a verdade é que Asimov escreveu este livro em 1987 a partir de um guião seu para um filme de 1966 (com o qual não ficou satisfeito). Nas edições mais recentes, o título dado a este livro é Viagem Fantástica II - Destino Cérebro.

 

Um livro de BD clássico e delicioso: Astérix e Latraviata, de Goscinny e Uderzo

 

P1680427.JPG

 

Sou completamente fã desta série de BD e tenho uma grande parte dos livros da colecção Este que sugiro é talvez um dos menos famosos, mas não é menos divertido do que qualquer um dos outros. Cheio, como sempre, de anacronismos deliciosos, pisca o olho à espionagem política e à manipulação psicológica, com os azarados romanos a continuarem azarados e os irredutíveis gauleses a continuarem grandes apreciadores de javalis. Impossível não terminar a (rápida) leitura com um sorriso no rosto.

 

Uma história verídica e divertida: A Minha Pequena Livraria, de Wendy Welch

 

P1680433.JPG

 

As aventuras e desventuras, contadas na primeira pessoa, de um casal que decidiu abrir uma livraria numa pequena localidade da Virgínia, nos Estados Unidos. Inicialmente projectado para ser um manual de apoio a quem quisesse iniciar-se no ramo livreiro (tal como a própria autora conta no livro), A Minha Pequena Livraria acabou por se transformar numa espécie de romance biográfico, despretensioso e muito bem-humorado, sobre um casal, os seus cães e gatos, uma comunidade nos Apalaches para quem eles eram estrangeiros, e um sonho que impulsivamente decidiram tornar realidade. Hoje, a livraria Tales of the Lonesome Pine – a verdadeira protagonista do livro – é já uma referência cultural local, e o seu dia-a-dia pode ser seguido mais de perto no blogue de Wendy: https://wendywelchbigstonegap.wordpress.com/.

 

Um romance no feminino: A Cor Púrpura, de Alice Walker

 

P1680447.JPG

 

É possível contar uma história de opressão e desamor de uma forma terna e quase doce? É sim, e Alice Walker consegue-o magistralmente neste romance. Quem gostou do filme de Spielberg vai adorar o livro, a linguagem expressiva que Celie usa nas suas cartas não enviadas a Deus e a Nettie, a sua irmã desaparecida, as subtilezas que deixam adivinhar sentimentos, as palavras cruas que descrevem injustiças e discriminação, e a evolução da aparentemente plácida e quase apática protagonista até se tornar numa mulher forte e independente. Quem não viu o filme, vai adorar o livro também. Certas passagens provocam-nos um aperto no peito, outras um sorriso de contentamento, mas ninguém consegue ficar indiferente.

 

Uma fantasia belíssima: O Circo dos Sonhos, de Erin Morgenstern

 

P1680437.JPG

 

Este é um livro surpreendente e com uma tal riqueza imaginativa ao nível dos pormenores que consegue transportar-nos quase fisicamente para o centro da acção. Dois mágicos competem um contra o outro, tentando manter-se imortais, e para isso fazem uso de dois pupilos e de um circo. O resto é uma teia de encantos, de coincidências e acasos e ocorrências que vão sendo contadas de forma meio solta até finalmente se encaixarem umas nas outras como peças de um puzzle bem imaginado, num cenário encantado por onde passeiam personagens misteriosas e, afinal, muito humanas, por mais que queiram contrariar a sua natureza.

 

Um romance leve e despretensioso: A Carta de Amor, de Cathleen Schine

 

P1680435.JPG

 

As livrarias são cenários apetecíveis para histórias de amor. Mas embora exista uma livraria envolvida neste romance, o catalisador da história é a carta que cai de dentro de um livro, uma carta que não refere nomes, só pseudónimos. Este acontecimento vai dar origem a uma sucessão de interpretações erradas, desencontros, situações divertidas e surpreendentes revelações. Ao contrário do que o título pode dar a entender, este não é um livro cheio de romantismos lamechas; é ternurento q.b., dá uns pontapés bem dados nalgumas convenções e tem muito humor.

Dele também foi feito um filme, mas na minha opinião o livro é bem melhor.

 

Um livro biográfico: Escritos de Frida Kahlo, com selecção de Raquel Tibol

 

P1680439.JPG

 

Já muito se escreveu, filmou e comentou sobre Frida Kahlo. Neste livro, é a própria voz desta pintora mexicana que se faz ouvir através de palavras escritas pela sua mão. São cartas, poemas e toda a espécie de outros textos, alguns apenas apontamentos, que Frida escreveu entre 1922 e 1951, e que Raquel Tibol (em tempos secretária de Diego Rivera, o marido da pintora) seleccionou e compilou para nos oferecer um retrato multidimensional e intimista da pintora, de quem o mínimo que se pode dizer é ter sido uma mulher original – e absolutamente excepcional.

 

Um Prémio Nobel: O Quinto Filho, de Doris Lessing

 

P1680451.JPG

 

Definitivamente, esta não é uma história “leve”. Então porque é que a incluo nesta lista? Porque gosto dela e porque é, também, uma história de amor e de esperança: o amor de uma mãe pelo seu filho e a sua esperança em conseguir proporcionar-lhe alguma felicidade. Numa família inglesa vulgar e feliz nasce um quinto filho que se revela agressivo e problemático desde o início, conseguindo afectar de forma negativa todo o ambiente familiar e espalhando infelicidade à sua volta. O resultado é o desmoronamento progressivo dessa família, em que a mãe é a única que consegue, com o sacrifício do seu bem-estar e dos seus sonhos, não desistir completamente de encontrar para esse filho um futuro melhor do que o que lhe parece estar predestinado.

Dramática e violenta, sobretudo psicologicamente, esta é uma história que nos agarra. E que suscita dúvidas angustiantes: porque é que certas pessoas parecem nascer para o mal? Será uma questão genética? Será possível contrariar esta característica com a educação? Haverá esperança de felicidade, quiçá de mudança para estas pessoas?

 

Um policial delicioso que afinal não é bem um policial: A Agência N.º 1 de Mulheres Detectives, de Alexander McCall Smith

 

P1680441.JPG

 

O problema maior deste livro é que quando se chega ao fim continuamos com vontade de ler mais. Nós e os acima de 20 milhões de pessoas que já leram o livro em todo o mundo… Mas não há problema: até agora o autor já escreveu outros 17 livros em que a personagem principal é Mma Ramotswe, primeira e única detective feminina no Botsuana, especialista em resolver problemas, mistérios e crimes de todas as espécies. Primeiro da série que tem o mesmo nome, A Agência N.º 1 de Mulheres Detectives é simplesmente de-li-ci-o-so e não há como não ficar a adorar a protagonista, a originalidade das histórias em que se vê envolvida, os seus métodos pouco ortodoxos mas muito eficazes, a sua humanidade e inteligência, o exotismo do ambiente e das tradições deste país africano. Tudo escrito e descrito de uma forma fluida, divertida, alegre e com grande sensibilidade, mesmo quando os assuntos abordados são mais pungentes. Resumir este livro numa palavra? É fácil: diferente.

 

Um livro de viagens: Nos Passos de Santo António, de Gonçalo Cadilhe

 

P1680425.JPG

 

Férias para mim são quase sempre sinónimo de viagem, seja para longe ou para perto. Mas mesmo para quem o conceito de férias signifique simplesmente ficar estiraçado num sofá, numa espreguiçadeira ou numa toalha de praia, em casa ou perto dela, um livro sobre viagens é sempre uma forma de viajar sem sair do sítio. Neste livro, o último do nosso mais emblemático escritor-viajante, Gonçalo viaja pelo percurso parcialmente conhecido (e parcialmente pressuposto) percorrido na Idade Média por aquele que é um dos santos mais amados da igreja católica e mais representados nas suas igrejas: Santo António de Lisboa (que também é de Pádua, pois não regressou à sua terra-mãe antes de morrer; mas nós perdoamos-lhe esta espécie de dupla nacionalidade). De Portugal a Itália, passando pelo norte de África e o Mediterrâneo, entre as reais aventuras do autor e as reminiscências da vida do nosso santo, este livro é simultaneamente uma lição de História e uma viagem temática inspiradora.

 

Um romance histórico em fundo africano: O Abissínio, de Jean-Christophe Rufin

 

P1680429.JPG

 

Finais do séc. XVII. Jean-Baptiste é médico no Cairo, mas o destino coloca-o numa comitiva que Luís XIV de França, desejoso de expandir ainda mais o seu poder, decide enviar em representação do seu reino ao Négus da Abissínia (Etiópia). Durante a sua viagem vai apaixonar-se por esta região feiticeira, pela sua cultura e gentes, vai conhecer personagens formidáveis e atravessar paisagens arrebatadoras, vai encontrar o amor, e vai acabar por defender firmemente um território que seria suposto ele subjugar e converter à fé católica.

Uma história envolvente, cheia de romance, aventura e pormenores que nos transportam a uma época e um horizonte longínquos, excepcionalmente bem escrita por Jean-Christophe Rufin, um médico, historiador, escritor e diplomata francês com uma longa e produtiva carreira em ONGs e como embaixador. O autor voltou a pegar nestas personagens para escrever O Boticário do Rei, com a acção a desenrolar-se vinte anos mais tarde.

 

Boas férias e boas leituras!

 

 

3 comentários

Comentar post