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Gene de traça

Livros e etc.

A vida é coincidência

por Ana CB, em 07.07.15

 

A BASTARDA DE ISTAMBUL

 

Elif Shafak

 

 

A Bastarda de Istambul.jpg

 

 

Título: A Bastarda de Istambul

Título original: The Bastard of Istanbul

Autor: Elif Shafak

Ano de lançamento: 2007

 

Editora: Jacarandá

Publicação: 1ª edição – Janeiro 2015

Número de páginas: 372

Tradução: Maria João Freire de Andrade

 

Há livros cuja sinopse nos engana de sobremaneira, e para mim este foi um desses casos. Não que isso seja forçosamente mau. Simplesmente estava à espera de uma coisa diferente; não melhor nem pior, mas diferente.

Fiquei com curiosidade de ler algo da Elif Shafak quando vi o nome dela mencionado por Paul Theroux no seu livro “Comboio-Fantasma para o Oriente”. Theroux encontrou-se com ela em Istambul, e dela diz que “a sua paixão e impulsividade eram inequívocas” e que “também era inesperadamente combativa”. Por coincidência, logo a seguir descobri que estava a ser lançado em Portugal este livro, e daí a comprá-lo foi um ai. A cereja no topo do bolo era, claro, o facto de ser passado em Istambul, que é “só” a minha cidade europeia favorita.

“A Bastarda de Istambul” é na verdade um pouco como a cidade do título: um cadinho de ambientes, de excentricidades, de contradições, de histórias. É uma história de mulheres e com mulheres, onde os homens apenas encarnam o papel de catalisadores pontuais, e no entanto determinantes. É uma história onde a realidade mais crua e o misticismo da vidência se entrelaçam, e esta mistura consegue ter algum sentido. É uma história cheia de personagens inverosímeis de tão excêntricas, mas ainda assim compostas por pequenas notas de humanidade. É uma história que fala do passado e do presente, de culpa e de perdão, de amor e de raiva, e de como tudo acontece por uma razão.

Asya é uma jovem turca no final da adolescência. Vive em Istambul, rodeada de avós, tias e a sua mãe, todas elas mulheres a quem a palavra “normalidade” não se aplica. Não há homens na família próxima (morrem todos muito cedo) e desconhece quem é o seu pai. Niilista por natureza, frequenta um café onde se encontra regularmente com os seus amigos, outras personagens também à deriva na vida.

Armanoush, é uma jovem americana mais ou menos da mesma idade. Vive no Arizona com a mãe, também americana, e o padrasto, que é o único homem ainda vivo da família de Asya. O pai de Armanoush e toda a sua família vivem em São Francisco e são descendentes de arménios, a cujas tradições estão fortemente agarrados, razão pela qual sentem um ódio visceral pela Turquia. A adolescente vive dividida entre as suas duas famílias antagónicas, procurando agradar a ambas, pertencer a ambas, buscando consolo e orientação num grupo de amigos também de origem arménia que só conhece pela internet.

Asya e Armanoush são duas raparigas à procura das suas raízes, tentando perceber qual é o lugar que ocupam no mundo. Separadas por muitos milhares de quilómetros, o acaso acaba por as juntar, e este simples facto desencadeia uma série de acontecimentos empurrados pela força do destino, que culminam no desvendar de segredos há muito tempo guardados.

Mas o livro vai mais longe. Como pano de fundo é abordada a história do genocídio arménio perpetrado pelo Império Otomano no início do Séc. XX, um genocídio que a Turquia continua a não reconhecer e está há muito tempo praticamente esquecido, mas devido ao qual se calcula tenham morrido cerca de um milhão de arménios. Aliás, foi precisamente o facto de incluir esta história no seu livro que valeu à escritora um processo judicial interposto por um grupo nacionalista (acusada de denegrir a essência turca), do qual foi felizmente ilibada.

Elif Shafak é a escritora turca com mais livros vendidos da actualidade. Tem recebido inúmeros prémios e distinções pelos seus trabalhos (nem todos são romances). Nas suas histórias combina a actualidade com a tradição, a filosofia com a história, a cultura oral com a intervenção cultural. Escreve com uma voz moderna e ainda assim cheia de sensibilidade; vai variando o tom, os narradores, os pontos de vista, até por vezes o formato da escrita, o que contribui para animar uma história que de outro modo talvez fosse demasiado pesada. Na altura do lançamento deste livro no nosso país deu uma entrevista ao DN (que pode ser lida aqui) onde fala precisamente das suas preocupações e da literatura nos dias de hoje.

Não irei ao ponto de dizer que “A Bastarda de Istambul” será um dos meus livros preferidos. Gostei bastante da história e da escrita de Elif Shafak, mas não me encheu completamente as medidas. Fiquei quase com a sensação de que é um livro condensado, de que haveria ali muito mais a explorar. Terá sido provavelmente intencional por parte da autora, mas para mim é como se faltasse qualquer coisa. Gostaria também que houvesse mais Istambul na história, que a cidade estivesse mais presente – porque é uma cidade linda, que eu adoro, e porque se presta maravilhosamente a ser o cenário para um romance. A questão do genocídio também poderia ser algo mais aprofundada – a autora faz uma breve viagem no tempo para contar uma pequeníssima parte da história dos antepassados de Armanoush, mas este “flashback” sabe a pouco.

O que na minha opinião redime o livro são precisamente os capítulos finais. As pontas deixadas soltas ao longo da narrativa unem-se finalmente e conseguimos então ver todo o quadro. Como rios correndo para se juntarem antes de desaguar, assim confluem todas aquelas pequenas histórias para um final comum, porque tudo o que é contado ao longo do livro tem um propósito: o de nos mostrar que a vida é coincidência, e que por muitas voltas que se dê, não há como escapar-lhe.

 

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