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Gene de traça

Livros e etc.

À volta do jazz

por Ana CB, em 26.06.14
MAS É BONITO
Geoff Dyer

 

 

Título: Mas É Bonito

Título original: But Beautiful: A Book About Jazz

Autor: Geoff Dyer

Ano de lançamento: 1991

 

Editora: Quetzal

Publicação: 1ª edição – Abril 2014

Número de páginas: 224

Tradução: Bruno Vieira Amaral

Revisão: Pedro Ernesto Ferreira

 

 

Este é um livro sobre o jazz. Talvez eu devesse dizer “sobre jazz”. Mas não sei porquê, acho que aqui o artigo faz falta. “O” jazz. E vou mais longe: “o” livro sobre o jazz. Explico-me já a seguir.

 

Na música como em quase tudo, sou um bocado ecléctica no que se refere a gostos. Mas só um bocado, claro, tenho os meus limites. Adiante. Gosto de jazz, mas não de todo o jazz. Por exemplo, não sou grande apreciadora de free jazz. Dito isto, reconheço o enorme talento de alguns autores e intérpretes do jazz nas suas diversas vertentes – lá por eu não gostar de algumas coisas, não quer dizer que elas não sejam boas, obviamente. Mas a verdade é que o jazz como género musical nunca teve da minha parte mais do que audições esporádicas e a compra de meia dúzia de vinis e CDs. Ou seja, sou uma completa ignorante no que toca a esta categoria da música.

 

Aqui há uns tempos, quando procurava livros para levar de férias, vi em qualquer lado um elogio a esta obra. Nunca tinha lido nada de Geoff Dyer, mas o nome soava-me vagamente familiar, fiquei curiosa em relação ao livro. E, claro, acabei por o comprar.

 

É melhor dizê-lo já: é um livro absolutamente brilhante. A escrita de Geoff Dyer é ao mesmo tempo fluida e rica, onírica e crua, descritiva e metafórica. Linha após linha vamos imaginando cada cena em pormenor, descobrindo a complexa personalidade de cada personagem camada por camada, conhecendo passo a passo a história do jazz e as suas características. Partindo de momentos e situações conhecidas da biografia de vários grandes intérpretes da música jazz, Dyer improvisa (ele próprio o afirma) à volta dos factos reais e constrói ficções segundo a sua própria interpretação, num exercício jazzístico que tenta ir mais longe e mais fundo na compreensão das personagens e do que as move.

 

É além disso um livro que se lê quase de um só fôlego. Cada história é independente, mas por vezes há referências a personagens de alguma outra história. E é assim, num continuum perfeito, que Dyer nos transporta através da história do jazz e nos elucida sobre técnicas e pormenores e ambientes e intérpretes como se estivéssemos em amena cavaqueira num café, sem esforço mas com uma grande riqueza nos detalhes e nas extraordinárias imagens, metáforas e analogias que ele cria para nos prender a atenção. Pinta quadros com palavras, alimenta todos os nossos sentidos, mesmo que só na nossa imaginação, e nunca, nunca se torna aborrecido.

 

Num posfácio com cerca de 30 páginas, em jeito de “pano de fundo”, Dyer proporciona-nos ainda algumas explicações e reflexões que ajudam a compreender melhor as histórias do seu livro. E que nos fazem pensar e levantar questões.

 

Uma das suas afirmações é a de que “a capacidade do jazz para absorver a história de que faz parte caminha a par da sua capacidade para elevar à condição de génios aqueles que de outra forma não teriam um meio de autoexpressão”. Homens e mulheres que exprimindo-se através do jazz conseguiram atingir um estatuto que de outro modo lhes estaria vedado. E isto leva-nos também a outra face da questão: a instabilidade psicológica, que assume muitas e variadas formas, da grande maioria destes talentosos artistas. Será que, nesta mais ainda do que em outras artes, a genialidade terá forçosamente de andar acompanhada pela excentricidade, a tendência para a autodestruição e a loucura?

 

Dyer diz também que há uma dúvida “que assola os intérpretes contemporâneos do jazz: será que ainda há algum trabalho importante por fazer?” e que “o jazz actual vive inelutavelmente preocupado com a sua própria tradição” para concluir depois que, no jazz, “qualquer espécie de revivalismo está condenada – pois contraria um dos princípios motrizes desta música - mas o desenvolvimento do jazz depende agora da sua capacidade de absorver o passado”.

 

Só alguém com um grande amor pelo jazz, com muitas horas de audição, análise e reflexão, e com um imenso talento para a escrita poderia ter construído este livro. A minha curiosidade levou-me mais longe e ao pesquisar na net mais informações sobre Geoff Dyer encontrei uma entrevista fascinante que foi publicada na revista Believer em Março de 2012 e que é possível ler em http://www.believermag.com/issues/201203/?read=interview_dyer. Aconselho veementemente a sua leitura. Dyer é realmente um pensador fora de série, com uma extraordinária capacidade de interrelacionar aspectos diversos que parecem à partida não ter qualquer ligação entre si e um poder de comunicação espantoso. Uma mente brilhante e inspiradora. Fiquei fã e vou ler outros livros dele assim que tiver oportunidade.

 

Porque é a área em que me movo profissionalmente, é claro que quando leio presto particular atenção à qualidade da tradução (quando é o caso) e da revisão. E neste aspecto o livro também merece que eu exprima o meu apreço pelo tradutor que, na medida do que me é possível aferir, fez um bom trabalho, algo que está a tornar-se raro nos dias de hoje. Igualmente raro é encontrar um livro com poucas gralhas e onde não estou constantemente a ser incomodada por disparates que me irritam e cortam a concentração. Este é um deles, o que abona também muito a favor do trabalho de revisão.

 

Não sei dizer se este livro fará com que eu passe a gostar mais de jazz. Mas uma certeza tenho: a de que vou passar a ouvir mais jazz, e sobretudo a ouvi-lo “com outros olhos”. Despertou-me a vontade de conhecer outros intérpretes e compositores com os quais estou menos familiarizada, descobrir as novas correntes, abrir o meu espírito. Posso nunca vir a ser uma adoradora incondicional do género, mas a leitura deste livro tornou-me certamente uma pessoa mais sensível e interessada. O que é bem mais do que a maioria dos livros se pode gabar de fazer.

Gene de traça

por Ana CB, em 25.06.14

Digo muitas vezes que devo ter um gene de traça, porque adoro papel. As árvores que me desculpem, mas esta é a verdade: adoro o papel em todas as suas texturas e cores, adoro o cheiro do papel, mexer em papel, fazer embrulhos, escrever em papel. Adoro agendas, caderninhos, blocos, e até mesmo post-its. E, obviamente, adoro livros. Em papel.

 

Claro que o meu amor pelos livros não advém só do facto de eles serem, ainda na sua maioria e por enquanto, impressos em papel. Neste caso, a impressão em papel é a cereja no topo do bolo, porque a paixão pela leitura vem de longe, é uma coisa de sempre.

 

Não me lembro de mim antes de saber ler, mas talvez isso suceda porque comecei a ler muito cedo. Conta-me a minha mãe que eu era ainda muito pequenina e já prestava atenção às letras e às palavras escritas, percebia que tinham um significado, queria saber o que elas diziam. Consta que massacrava toda a gente para me lerem tudo o que via, fossem nomes de ruas ou anúncios em outdoors. Já cansada de aturar as minhas solicitações constantes (e porque eu era muito tagarela), a minha mãe às vezes despachava-me, dizia-me para eu ir aprender a ler. E eu aprendi assim que pude, teria uns 4 anos e picos, acabadinha de entrar num colégio infantil, e tão rapidamente que no início os meus pais julgavam que eu fingia que lia coisas que tinha decorado – e só quando me puseram um jornal à frente e eu comecei a lê-lo quase sem hesitações é que acreditaram.

 

A partir daí, ninguém mais me parou. Passei a ler tudo o que me chegava às mãos, fosse de que espécie fosse: revistas, livros, fotonovelas, banda desenhada… tudo servia. A literatura infantil era nessa altura muito mais limitada do que hoje – e ainda estávamos no tempo da censura – mas como felizmente cresci numa família onde os livros eram apreciados, acabei por encontrar sempre alimento para este meu vício, tanto nos que me ofereciam como nos que habitavam as paredes lá de casa.

 

O vício dura até hoje, e se tudo correr bem irá morrer comigo. Não devo ter tido muitos dias da minha vida em que não lesse nem que fossem meia dúzia de páginas de um livro. Tenho em casa uma parede toda ocupada por estantes com livros, mas estou urgentemente a precisar de mais espaço, porque eles continuam a aumentar em número. Não viajo sem livros na bagagem, o que me provoca sérios problemas de arrumação quando só levo uma mala de cabina. Começo a ressacar quando estou a terminar um livro e não tenho mais nenhum para iniciar a seguir. Nenhum que me apeteça, claro, porque há sempre aqueles que ficam eternamente por acabar de ler, e os outros que apetece reler sempre.

 

Dito isto, não tenho quaisquer pretensões intelectuais e as minhas leituras são muito variadas e aleatórias. De igual modo, não sou linear nos meus gostos. Há livrinhos que me entusiasmaram, e grandes obras que me aborreceram de morte. Hoje considero entediantes alguns géneros e escritores que em tempos devorei, enquanto há outros de que não me canso. Ler e falar sobre livros é sempre uma experiência pessoal e subjectiva – mas muito enriquecedora. É uma paixão inexplicável, felizmente partilhada por muitos, infelizmente não por todos. Que eu também vou partilhar aqui, na blogosfera. E no papel, claro, mesmo que só para mim.

 

O que estou a ler agora: Mas é Bonito, de Geoff Dyer. Mais notícias em breve…