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Gene de traça

Livros e etc.

Terror, horror, fantástico e coisas assim

por Ana CB, em 31.10.16

 

Desde que me lembro, sempre tive medo do escuro. Medo mesmo, a ponto de durante algum tempo precisar de dormir com uma lamparina acesa (sim, naquela altura ainda se usavam lamparinas) à entrada do quarto. A minha nictofobia durou muitos anos, e já era bem adulta quando finalmente passou. Escusado será dizer que fui também uma miúda facilmente impressionável, por isso nunca convivi muito bem com histórias que envolvessem monstros, seres sobrenaturais e afins. Estranhamente, o sangue nunca me incomodou – podia ver ou ler sobre as maiores sangueiras do mundo, que isso não me afectava. Mas bastava lançarem um espírito demoníaco ou um alien predador na história para me verem toda encolhidinha de medo.

 

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Tinha aí uns quinze anos quando li “O Exorcista” de William Peter Blatty, que tinha na altura dado origem ao filme. Acabei de o ler já noite dentro, e estava tão aterrorizada que me levantei e fui acendendo as luzes todas da casa até chegar à divisão onde a minha irmã dormia para a acordar sem cerimónias e lhe pedir para ficar a falar comigo durante um bocado.

 

A experiência foi suficientemente traumatizante para me manter arredada de livros do género durante muitos anos.

 

Mas o mesmo não posso dizer em relação aos filmes, pois de vez em quando lá caía na asneira de ir ver um filme de terror, fosse porque desconhecia que era desse género, fosse porque a curiosidade falava mais alto do que a minha cautela, fosse porque alguém acabava por me convencer a ir com o argumento de que estaria a perder “um filme muito bom”. E se “O Tubarão”, por exemplo, não me afectou por aí além, o mesmo não posso dizer do “Drácula” na sua versão de 1979, de “A Semente do Diabo” (mais conhecido pelo título original, “Rosemary’s Baby”), ou de “Alien, o 8º Passageiro” (o primeiro filme da saga), que me deram pesadelos durante inúmeras noites – isto só para citar alguns.

  

A verdade é que eu cresci numa época em que a ideia do mundo era transmitida às crianças como um lugar cheio de perigos desconhecidos, fossem eles de origem humana ou sobrenatural. Até as histórias supostamente infantis mais populares pareciam ter como missão aterrorizar mais do que distrair: um lobo que come pessoas, uma bruxa que oferece uma maçã envenenada, uma casinha de chocolate onde vive uma bruxa que come criancinhas, um país onde a rainha ordena indiscriminadamente que se cortem cabeças… Convenhamos que nada disto era propriamente adequado a tranquilizar espíritos timoratos.

 

Era uma altura em que os dinossauros eram monstros horrorosos e destruidores como a “Godzilla”, os vampiros eram seres demoníacos sem um pingo de bondade no corpo, e os zombies apareciam não se sabe bem porquê e eram praticamente invencíveis. Hoje mudou tudo: os dinossauros viraram bichos fofinhos e maioritariamente inofensivos, os vampiros e lobisomens são personagens românticos e incompreendidos, e os mortos-vivos são as pobres vítimas de uma qualquer experiência que correu mal e há até quem se dedique a tentar encontrar uma cura para a sua doença. Talvez por oposição ao mundo, que parece estar cada vez mais perigoso e louco, a imagem dos misteriosos representantes do Mal de outros tempos tem vindo a ser progressivamente “adocicada”.

 

Apesar disso – ou, quem sabe, por causa disso - o género está bem e recomenda-se, tanto na literatura como no cinema.

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E a propósito de género, de que é que falamos quando falamos em ficção de terror, horror, fantástico e etc.?

 

A linha que divide o terror do horror é tão fina que muitas vezes nem conseguimos separar um do outro. Mas existe alguma diferença. O terror é geralmente descrito como sendo um sentimento de pavor, de medo antecipado, quando achamos que algo de muito mau vai acontecer. Já o horror é o que sentimos quando vemos ou ouvimos algo que nos causa repulsa, ou passamos por uma experiência extremamente desagradável. O terror está relacionado com os nossos medos e ansiedades, com a nossa imaginação, e anda frequentemente de mãos dadas com o suspense, enquanto o horror é uma reacção involuntária na sequência de um acontecimento que nos choca ou amedronta.

 

A ficção fantástica é toda aquela que aborda factos que fogem à nossa lógica e à nossa realidade. Pode contar-nos histórias de fantasia, sobrenaturais ou ir pelos caminhos da ficção científica. Pode manter-nos em suspense, criar atmosferas de terror e causar-nos horror. Pode também encantar-nos, abrir as comportas da nossa imaginação e levar-nos a mundos desconhecidos para experimentarmos emoções contraditórias. E está de muito boa saúde nos dias que correm.

 

Na verdade, cada vez há mais público fiel ao género. E mais escritores para o alimentarem, que lançam novidades a um ritmo alucinante e para todos os gostos. Na onda deste filão recém-descoberto, os clássicos são revisitados e reinventados, e alguns viram autores de culto. Criam-se sequelas e prequelas, há adaptações de livros para a tv e o cinema, e os argumentos de filmes e séries transformam-se em livros.

 

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Apesar de ter ultrapassado a minha nictofobia de forma natural e sem dar conta, a minha relação com a ficção de terror continua atribulada. Por vezes adoro, por vezes deixa-me inquieta e detesto. Mas só mesmo a de terror, que de resto sou bastante fã da ficção fantástica, e isto já desde miúda – muito provavelmente desde que a minha mãe me deu “Os mais belos contos de fadas” (de que já falei aqui) e mais tarde alguns livros de Júlio Verne, que foi sem dúvida o precursor da ficção científica moderna. Em adolescente li os clássicos “A guerra dos mundos” de H.G.Wells, “1984” de George Orwell, “Admirável mundo novo” de Aldous Huxley, e “Tales of Mistery & Imagination”, uma compilação de alguns dos melhores contos de Edgar Allan Poe, que ainda hoje continuam a ser dos meus livros preferidos. E “Fahrenheit 451” e outros de Ray Bradbury, além das obrigatórias obras de culto “Drácula” de Bram Stoker e “Frankenstein” de Mary Shelley. Mais tarde “descobri” Tolkien e o seu “Hobbit”, Isaac Asimov e a sua “Fantástica viagem ao cérebro”, e a saga “Dune” de Frank Herbert.

 

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Li “Contacto”, de Carl Sagan, assim que saiu, vários de Michael Crichton (o autor de “Parque Jurássico” e “A Esfera”) e “Um estanho numa terra estranha” do polémico Robert Heinlein. Depois viciei-me em Stephen King (também já falei sobre ele neste post) e li também George R.R.Martin, o autor das “Crónicas de gelo e fogo”, que deram origem à série “A Guerra dos Tronos”. E sabiam que até Isabel Allende já fez “uma perninha” no campo do fantástico? Não falo de “A casa dos espíritos”, que se enquadra na corrente do realismo mágico, mas sim de uma trilogia que escreveu entre 2002 e 2004 e dá pelo nome genérico de “As aventuras da Águia e do Jaguar” e cujos protagonistas são dois adolescentes e um macaco que se vêem enredados em estranhas aventuras em vários pontos do globo – histórias onde as espiritualidade e o sobrenatural se entrelaçam com uma nítida preocupação ecológica e antropológica.

 

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Podia ainda falar de Anne Rice, Clive Barker, Justin Cronin ou Gillian Flynn, e de muitos outros, ou das famosíssimas J.K.Rowling e Stephanie Meyers, mas então é que este post não terminava nunca…

 

É como eu disse acima: a ficção fantástica, seja de terror ou outra, está de boa saúde e a florescer a olhos vistos. Eu gosto. E vocês?

 

Entre aspas #10 Annie Dillard

por Ana CB, em 06.10.16

 

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O Gerente da Noite

por Ana CB, em 03.10.16

 

Já aqui falei por alto de cinema e da relação estreita entre livros e filmes, mas hoje vou falar de televisão. Mais concretamente, de séries televisivas.

 

Longe vai o tempo em que as séries que víamos na televisão eram os parentes pobres do cinema. Cá em Portugal quase se resumiam a séries policiais americanas e a uma ou outra produção inglesa ou eventualmente com outro país de origem (não estou obviamente a incluir as sitcoms, que sempre abundaram). Tinham em comum o facto de serem habitualmente interpretadas por actores e actrizes pouco ou nada conhecidos no mundo cinematográfico – eram assim como que um laboratório para novos actores, e para quem é mais jovem ou tem memória curta deixem-me dar-vos alguns exemplos de que me lembro assim de repente: Anthony Hopkins foi o Pedro de “Guerra e Paz”, na adaptação que a BBC fez em 1972 da obra de Lev Tolstoi; Meryl Streep e James Woods fizeram par romântico na mini-série “Holocausto” exibida em 1978 pela NBC; Jeremy Irons foi um dos protagonistas de “Reviver o passado em Brideshead”, uma série de 1981 produzida pela Granada Television com base no romance de Evelyn Waugh. Estas e outras séries foram a rampa de lançamento para grandes actores do cinema actual.

 

No entanto, apesar da sua inegável qualidade – sobretudo das séries britânicas, que foram e continuam a ser do melhor que por aí anda – as séries televisivas só há relativamente poucos anos adquiriram um estatuto autónomo de produto com interesse e qualidade no qual vale a pena apostar, com retorno garantido. Os bons resultados estão à vista, com produções milionárias e ao nível do melhor cinema, dirigidas por excelentes realizadores e protagonizadas por actores famosos – ao imporem-se como produto independente e valorizado, as séries televisivas conseguiram esbater a fronteira rígida que subsistiu durante muito tempo entre actores de televisão e actores de cinema (que curiosamente nunca existiu entre cinema e teatro, talvez por ambas as artes estarem associadas a uma ideia de qualidade e elitismo que a televisão nunca teve). E quem ficou a ganhar fomos nós, o público.

 

As séries britânicas sempre foram das minhas favoritas. Não há quem lhes chegue aos calcanhares sobretudo no que toca a recriar épocas passadas e romances históricos, e os actores e actrizes oriundos das ilhas britânicas (e para quem tiver dúvidas, as ilhas britânicas incluem a Irlanda) são dos melhores do mundo. Tão bons que conseguem imitar perfeitamente o sotaque norte-americano e por vezes nem nos damos conta de que não foram realmente nados e criados nos Estados Unidos. Dúvidas? Então aqui vão alguns nomes ao acaso: Audrey Hepburn, Michael Caine, Kate Winslet, Idris Elba, Ralph Fiennes, Keira Knightley, Ewan McGregor, Catherine Zeta-Jones, Hugo Weaving, Sam Neill, Vanessa Redgrave, Gerard Butler, Kiefer Sutherland, Orlando Bloom, Rachel Weisz, Christian Bale, Jude Law, Carey Mulligan, John Hurt, Jason Statham, Rosamund Pike, Tim Roth, Julie Christie, Christopher Lee, Damian Lewis, Joan Collins, Gary Oldman, Ian McKellen, Kate Beckinsale, Colin Farrell. E estes são só alguns dos que mais associamos ao cinema americano, porque a lista é quase infindável.

 

Bom, mas vem isto tudo a propósito de quê?

 

É que fiquei apaixonada por uma mini-série de que já tinha ouvido falar bastante mas só agora tive oportunidade de ver (no canal AMC): “O Gerente da Noite”, a partir do livro homónimo de John Le Carré. São apenas seis episódios, mas muito intensos, bem realizados, bem produzidos, e sobretudo muito bem interpretados.

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John Le Carré, cujo verdadeiro nome é David John Moore Cornwell, trabalhou durante alguns anos no MI6 (o serviço britânico de “informações”) e os seus primeiros livros giram à volta da espionagem no tempo da Guerra Fria, tendo a temática mudado depois para os conflitos religiosos e/ou éticos mas sempre com a espionagem como pano de fundo. Vários deles foram adaptados ao cinema, com mais ou menos sucesso, como “A Casa da Rússia”, “O Alfaiate do Panamá” ou “O Fiel Jardineiro”, entre outros. Os seus livros têm em comum enredos intrincados, personagens profundamente humanas e conflitos morais, mas a linha entre o bem e o mal está sempre nitidamente definida.

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A história de “O Gerente da Noite” centra-se em Jonathan Price, um gerente de hotel que se vê inadvertidamente recrutado para se infiltrar na entourage de um poderoso negociante de armas que os serviços secretos britânico e americano querem apanhar. Roper é um homem ganancioso e sem escrúpulos que esconde habilmente as suas actividades ilícitas atrás de uma capa de filantropia e de uma vida privada inexpugnável. Empurrado pelos serviços britânicos de espionagem e por uma vontade pessoal de vingança – o assassinato de uma mulher com quem tinha tido um breve relacionamento – Price vai construir para si um passado violento e sujeitar-se a tudo para penetrar no mundo privado de Roper e tentar obter provas da sua má conduta.

 

O argumento da série tem diferenças substanciais em relação ao livro, mas o resultado final é muitíssimo bom. Uma das maiores alterações é o facto de o agente que convence Price a aproximar-se de Roper ser na série uma mulher (Angela Burr), e não um homem como no livro (Leonard Burr). Mais ainda, Angela Burr está grávida (devido à própria e muito visível gravidez da actriz Olivia Colman), o que dá à personagem e consequentemente à história uma dimensão mais humana e real. Além disso, a acção foi transportada para a actualidade, com o cartel colombiano de droga do livro a ser substituído por negociantes de origem árabe e um lógico deslocamento geográfico dos eventos. E o final da série é também bastante diferente – mas quanto a isso não vou falar para não ser spoiler.

 

Com tudo isto, já devem ter percebido que a série é de produção maioritariamente britânica (da BBC, em parceria com as americanas AMC e Ink Factory), razão pela qual os actores também são quase todos britânicos, com grande destaque para os protagonistas: Tom Hiddleston (Jonathan Price) e Hugh Laurie (Richard Roper). Para os mais distraídos, Hiddleston é o “Loki” de “Thor” e “Os Vingadores”, e Laurie é nada mais nada menos do que o famoso “Dr. House”. Qual deles o melhor… Hiddleston já provou várias vezes que é bem mais do que uma carinha laroca, e arrisca-se seriamente a ser o próximo Bond – aliás, este seu Jonathan Price tem o factor coolness exacto para um hipotético 007, faltando-lhe apenas uma atitude algo mais blasé e quiçá mais “activa” para ser um alter ego do famoso espião (que tem vindo progressivamente a tornar-se mais “humano” de actor para actor). Quanto a Hugh Laurie, descoberto há uns anos pela América, tem carreira já bem mais longa e firme no Reino Unido. Além de House, por cá vimo-lo sobretudo em comédias, nomeadamente em várias das hilariantes séries “Blackadder”, em “A Bit of Fry and Laurie” (com o também excelente Stephen Fry) e nos filmes “Stuart Little”, mas ele é um artista multifacetado que além do mais canta, toca e tem dado a voz a inúmeras personagens de filmes de animação.

 

“O Gerente da Noite” entusiasmou-me também pelos bem escolhidos cenários da série: Maiorca, Istambul, Cairo, Devon e Zermatt. Embora na realidade as cenas passadas no Cairo e Istambul tenham sido rodadas em Marrocos e as de Zermatt quase todas em estúdio, há belíssimas imagens das cidades e paisagens que são mostradas em separador. Já a mansão de Roper em Pollença (norte de Maiorca) existe realmente; tem o nome de Sa Fortaleza, data do séc. XVII e pertence ao banqueiro inglês Lord James Lupton, sendo a propriedade mais cara de Espanha (foi comprada em 2011 por 40 milhões de euros). As imagens aéreas da zona filmadas para a série são de tirar o fôlego e fazem jus à beleza do lugar.

 

Só o trailer já é qualquer coisa de especial:

 

E já que falo de séries inglesas, deixo aqui a sugestão de algumas das minhas preferidas, para quem ainda não as tiver visto: Sherlock, Luther, Downton Abbey, The Office, The Bletchley Circle, Coupling, Prime Suspect, Two Pints of Lager and a Packet of Crisps, Pride and Prejudice, The Paradise. Há comédia, drama, crime e mistério, história, grandes romances – um pouco de tudo, para todos os gostos. E ao alcance de uns cliques.