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Gene de traça

Livros e etc.

Há sempre um livro desconhecido à espera de nós #1

por Ana CB, em 29.07.15

 

Dando início ao desafio que me propus aqui há dias, a minha primeira sugestão é um livro que acho bem apropriado para ler em tempo de férias. Não será certamente um livro fácil de encontrar, mas existe à venda em segunda mão.

 

“A ESTRATÉGIA DO BOBO” de Serge Lentz

  

Estratégia do Bobo.jpg

 

Título: A Estratégia do Bobo

Título original: La Stratégie du Bouffon

Autor: Serge Lentz

Ano de lançamento: 1990

 

Editora: Círculo de Leitores

Publicação: Outubro 1993

Número de páginas: 382

Tradução: António Gonçalves

 

 

Sinopse

 

Em Roma, incitado por uma mãe tão rica quanto ambiciosa, Nicolas d’Ausonne torna-se prelado com a idade de vinte e três anos. É um homem belo com um espírito brilhante, mas também um debochado sem emenda. Por ter apostado no cardeal errado na altura do conclave de 1458 (o chamado conclave das latrinas…), o jovem prelado cai em desgraça e vê-se exilado num mosteiro esquecido da região de Vallée Borgne, uma fenda árida e despovoada situada entre Cévennes e o Languedoc.

Acha-se assim na situação dos funâmbulos das feiras, que suscitam a admiração das pessoas quando caminham sobre um cabo, e o gozo de todos quando caem. Estes bobos nunca podem ser heróis, a não ser que voltem a subir para o cabo e consigam proezas ainda maiores.

Para Nicolas d’Ausonne, isto é uma questão de estratégia. E ele encontra o seu instrumento na pessoa de Marin, um monge com voz de ouro, misto de soldado, médico e por vezes burlão para as necessidades da sua causa. Ao contrário dos outros pregadores do seu tempo, que falam de um apocalipse eminente e encorajam os fiéis às mortificações mais violentas, Marin prega o amor de Deus através da alegria de viver e do bom uso dos prazeres da vida… Todos os prazeres!

Num séc. XV tão cristão, esta visão torna-se evidentemente a origem de várias desordens. É uma sucessão de furores e maravilhas, cruzadas com alcovitices e agressões, povoadas de gente brutal e de homens do clero, de monges errantes e de mulheres admiráveis, uma crónica tratada com aparato numa nuvem de palavras deslumbrantes. Tal como em “Les années-sandwiches” e “Vladimir Roubaïev”, também aqui Serge Lentz desfralda uma bandeira que ostenta as cores mais radiantes da vida.

(tradução da sinopse publicada aqui)

 

A minha opinião

 

Li e reli este livro, e agora que voltei a folheá-lo estou com vontade de o ler novamente. Tem todos os ingredientes que valorizo: um enredo original, contexto histórico, personagens cativantes, episódios rocambolescos, muito humor e muita sensibilidade. Está bem escrito, mas lê-se facilmente, quase de um só fôlego – ficamos agarrados desde as primeiras páginas, e não apetece largá-lo. Não há um único instante de monotonia nesta história que nos fala de amizade, de prazer, e de uma forma muito original de olhar para a religião. Os protagonistas são simultaneamente truculentos, amorais e adoráveis, mesmo nos seus piores momentos, e afeiçoamo-nos a eles de tal maneira que estamos o tempo todo a torcer para a que a história tenha um fim feliz.

A escrita de Serge Lentz é fluida, elegante e bem-humorada, e ele consegue imprimir ao texto a mistura adequada de gravidade e ligeireza para nos proporcionar uma leitura agradável, enquanto nos leva a reflectir de forma profunda e sensível sobre a natureza da fé.

Tendo feito a sua carreira profissional essencialmente como jornalista, Serge Lentz tem poucas obras publicadas, mas todas elas foram alvo de rasgados elogios e prémios. Infelizmente, creio que “A Estratégia do Bobo” terá sido o seu único livro publicado em português – pelo menos não encontrei mais nenhum nas minhas pesquisas na net. Mas há sempre a possibilidade de as ler em francês, para quem entender a língua.

Ou pode ser que um dia destes algum editor iluminado se lembre de publicar os seus livros no nosso país.

 

Preâmbulo para um desafio

por Ana CB, em 27.07.15

 

À meia dúzia de pessoas que de vez em quando lê o que aqui escrevo, eu me confesso: sou uma ladra.

Pior ainda: devia ter vergonha, e não tenho. Assumo publicamente esta minha fraqueza, a adicionar àquela que já conhecem e que é o facto de ser livrólica. Neste caso, uma coisa juntou-se à outra, e não consegui resistir à tentação.

Então passo a explicar. Aqui há tempos, a Magda e a M* conluiaram-se para lançarem a elas próprias o desafio de durante 45 dias publicarem, uma vez por dia, um post sobre livros, cada dia tendo um tema diferente. Claro que as segui tão religiosamente quanto possível, e convido-vos a irem lá espreitar as valiosas e sempre inspiradas opiniões destas duas navegantes do incomensurável mundo dos livros e da escrita. Foi um desafio de fôlego, que elas cumpriram heroicamente, e por isso estão de parabéns.

Quis o acaso que recentemente eu aproveitasse uns dias de férias para tentar resolver o problema do grave estado da minha biblioteca/escritório, onde ainda subsistiam vários caixotes por esvaziar, sobras da minha já não tão recente mudança de casa (dois anos e meio já é mais que tempo para ter tudo em ordem… mas ainda não tenho), e em cujas estantes os livros começavam a transbordar por causa da falta de espaço. Estantes novas compradas, foi na hora de reorganizar algumas prateleiras (tenho os livros mais ou menos agrupados por categoria) que me ocorreu, inspirada pelo exemplo das duas supracitadas meninas, desafiar-me a mim própria a fazer qualquer coisa que me levasse a revisitar alguns dos meus livros mais antigos e ao mesmo tempo tivesse alguma utilidade para quem lê. Mais ainda, que me obrigasse a escrever neste meu blog com mais frequência (a minha inconstância não tem a ver com falta de vontade nem de ideias, mas sim apenas de tempo, pior ainda porque me desdobro pelos meus outros dois blogues - o de escrita e o de viagens - e não quero abandonar nenhum deles).

E surgiu-me então esta ideia: há sempre um livro desconhecido à espera de nós. Um livro de que nunca ouvimos falar, que provavelmente não foi um best-seller, que é de um autor pouco conhecido, ou que é de um autor muito conhecido mas já “fora de moda”; um livro que não teve reedições ou não foi “entronizado” pelos críticos, mas que mesmo assim é um livro que adorei ler, que já reli, que está na lista dos meus preferidos, e que se calhar também outras pessoas gostariam de ler… se soubessem que ele existe.

Está então aqui lançado o desafio – a mim, e a quem quiser aqui dar a sua opinião. Nos próximos tempos vou tentar falar-vos, com alguma regularidade (sem promessas, porque não gosto de prometer o que não sei se vou conseguir cumprir), de alguns destes livros que têm lugar cativo na minha biblioteca e no meu coração. Para vos aguçar o apetite. Porque há muita leitura para lá dos clássicos e dos escritores “mainstream”. E porque há imensos livros que merecem uma segunda vida.

 

A vida é coincidência

por Ana CB, em 07.07.15

 

A BASTARDA DE ISTAMBUL

 

Elif Shafak

 

 

A Bastarda de Istambul.jpg

 

 

Título: A Bastarda de Istambul

Título original: The Bastard of Istanbul

Autor: Elif Shafak

Ano de lançamento: 2007

 

Editora: Jacarandá

Publicação: 1ª edição – Janeiro 2015

Número de páginas: 372

Tradução: Maria João Freire de Andrade

 

Há livros cuja sinopse nos engana de sobremaneira, e para mim este foi um desses casos. Não que isso seja forçosamente mau. Simplesmente estava à espera de uma coisa diferente; não melhor nem pior, mas diferente.

Fiquei com curiosidade de ler algo da Elif Shafak quando vi o nome dela mencionado por Paul Theroux no seu livro “Comboio-Fantasma para o Oriente”. Theroux encontrou-se com ela em Istambul, e dela diz que “a sua paixão e impulsividade eram inequívocas” e que “também era inesperadamente combativa”. Por coincidência, logo a seguir descobri que estava a ser lançado em Portugal este livro, e daí a comprá-lo foi um ai. A cereja no topo do bolo era, claro, o facto de ser passado em Istambul, que é “só” a minha cidade europeia favorita.

“A Bastarda de Istambul” é na verdade um pouco como a cidade do título: um cadinho de ambientes, de excentricidades, de contradições, de histórias. É uma história de mulheres e com mulheres, onde os homens apenas encarnam o papel de catalisadores pontuais, e no entanto determinantes. É uma história onde a realidade mais crua e o misticismo da vidência se entrelaçam, e esta mistura consegue ter algum sentido. É uma história cheia de personagens inverosímeis de tão excêntricas, mas ainda assim compostas por pequenas notas de humanidade. É uma história que fala do passado e do presente, de culpa e de perdão, de amor e de raiva, e de como tudo acontece por uma razão.

Asya é uma jovem turca no final da adolescência. Vive em Istambul, rodeada de avós, tias e a sua mãe, todas elas mulheres a quem a palavra “normalidade” não se aplica. Não há homens na família próxima (morrem todos muito cedo) e desconhece quem é o seu pai. Niilista por natureza, frequenta um café onde se encontra regularmente com os seus amigos, outras personagens também à deriva na vida.

Armanoush, é uma jovem americana mais ou menos da mesma idade. Vive no Arizona com a mãe, também americana, e o padrasto, que é o único homem ainda vivo da família de Asya. O pai de Armanoush e toda a sua família vivem em São Francisco e são descendentes de arménios, a cujas tradições estão fortemente agarrados, razão pela qual sentem um ódio visceral pela Turquia. A adolescente vive dividida entre as suas duas famílias antagónicas, procurando agradar a ambas, pertencer a ambas, buscando consolo e orientação num grupo de amigos também de origem arménia que só conhece pela internet.

Asya e Armanoush são duas raparigas à procura das suas raízes, tentando perceber qual é o lugar que ocupam no mundo. Separadas por muitos milhares de quilómetros, o acaso acaba por as juntar, e este simples facto desencadeia uma série de acontecimentos empurrados pela força do destino, que culminam no desvendar de segredos há muito tempo guardados.

Mas o livro vai mais longe. Como pano de fundo é abordada a história do genocídio arménio perpetrado pelo Império Otomano no início do Séc. XX, um genocídio que a Turquia continua a não reconhecer e está há muito tempo praticamente esquecido, mas devido ao qual se calcula tenham morrido cerca de um milhão de arménios. Aliás, foi precisamente o facto de incluir esta história no seu livro que valeu à escritora um processo judicial interposto por um grupo nacionalista (acusada de denegrir a essência turca), do qual foi felizmente ilibada.

Elif Shafak é a escritora turca com mais livros vendidos da actualidade. Tem recebido inúmeros prémios e distinções pelos seus trabalhos (nem todos são romances). Nas suas histórias combina a actualidade com a tradição, a filosofia com a história, a cultura oral com a intervenção cultural. Escreve com uma voz moderna e ainda assim cheia de sensibilidade; vai variando o tom, os narradores, os pontos de vista, até por vezes o formato da escrita, o que contribui para animar uma história que de outro modo talvez fosse demasiado pesada. Na altura do lançamento deste livro no nosso país deu uma entrevista ao DN (que pode ser lida aqui) onde fala precisamente das suas preocupações e da literatura nos dias de hoje.

Não irei ao ponto de dizer que “A Bastarda de Istambul” será um dos meus livros preferidos. Gostei bastante da história e da escrita de Elif Shafak, mas não me encheu completamente as medidas. Fiquei quase com a sensação de que é um livro condensado, de que haveria ali muito mais a explorar. Terá sido provavelmente intencional por parte da autora, mas para mim é como se faltasse qualquer coisa. Gostaria também que houvesse mais Istambul na história, que a cidade estivesse mais presente – porque é uma cidade linda, que eu adoro, e porque se presta maravilhosamente a ser o cenário para um romance. A questão do genocídio também poderia ser algo mais aprofundada – a autora faz uma breve viagem no tempo para contar uma pequeníssima parte da história dos antepassados de Armanoush, mas este “flashback” sabe a pouco.

O que na minha opinião redime o livro são precisamente os capítulos finais. As pontas deixadas soltas ao longo da narrativa unem-se finalmente e conseguimos então ver todo o quadro. Como rios correndo para se juntarem antes de desaguar, assim confluem todas aquelas pequenas histórias para um final comum, porque tudo o que é contado ao longo do livro tem um propósito: o de nos mostrar que a vida é coincidência, e que por muitas voltas que se dê, não há como escapar-lhe.